fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020 |
«Chamo a isto solidão compacta. Reduzido a mim próprio, separado do mundo exterior, no quarto, uma cápsula espacial (o mesmo silêncio, a mesma aparente imobilidade), torno-me mais denso. Ideias e sensações viram-se para dentro, cruzam-se, confundem-se pouco a pouco numa matéria única onde se distingue dificilmente qualquer coisa que não seja o sentimento pastoso, espesso da solidão. Uma esponja cheia.
Estendo-me na cama de ferro, com o cigarro aceso, e deixo passar o tempo. Outra ilusão. Na cápsula o tempo é imponderável. Pelo menos parece. Se pesa e passa, não dou por isso. Lá fora a luz crepuscular de manhã à noite, a monotonia, talvez com mais nuances do que a interior, em todo o caso tão pobres, tão cansativas, que fecho os olhos.
(...)
Anoiteceu. O céu tão limpo. É o que sucede depois destes nevoeiros. A porta sossegou. Afinal o presente, o futuro, interessam-me também. Não os rejeito, Gelnaa. Não rejeito nada. Espero. A solidão compacta desapareceu. Perante as estrelas torna-se difusa, quer dizer, suportável. Perde a consistência interior, evola-se de mim (não toda evidentemente), dissolve-se no mundo. Respiro outra vez.
A grande máquina trabalha. Bichos escondidos entre estrelas; Toiro, Leão, Carneiro, etc.; de flancos incendiados. Um desenho infantil. Penso que tudo isto pode ter morrido há muito. A estrela mais próxima, a oito anos-luz, é Sirius (sem falar da Alfa do Centauro invisível no hemisfério norte). Se explodir agora, só daqui a oito anos deixarei de a ver. Outras, daqui a cem, mil, um milhão, biliões... Não faz sentido. Perco-me nas contas.
O céu real é talvez irreal. Nada me garante que não contemplo um universo morto, um deserto. Talvez a máquina de facto parasse. Mas trabalha ainda nos meus olhos. Tece neles a sua própria harmonia. Dentro de oito anos pensarei na catástrofe ou no cansaço a que o médico dá o nome clínico de angústia. Tentarei então separar a aparência da realidade, se valer a pena.
Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro («A Fuga»), 3º ed. (corrigida), Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979, pp. 212, 220, 221.
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