fotografia: filipe sousa | 8 março 2020 |
Neste dias em que andamos meio perdidos, perdamo-nos outro tanto, como que para contrabalançar, com a leitura/releitura das aventuras do engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha. Provavelmente, um dos melhores antídotos contra o ambiente pesado que se respira. Quem disse que este era, por excelência, «o» Romance, estava redondamente certo. Isto traduzido em desafio significa (re)ler cerca de 1000 páginas, distribuídas por 122 capítulos (mais o prólogo), à razão de 1 capítulo por dia, com início no próximo dia 1 de Abril. Se tudo correr bem, teremos dado a empreitada por terminada exactamente no dia 1 de Agosto, sem o vírus, esperamos, rondando ao virar da esquina (ou da duna de areia).
Nessa altura, já contagiados pela obra, podemos sempre reservar uma quarentena para viajar pela Rota Literária do Quixote (http://www.rutaquijote.es/), cruzando a Mancha imensa e profunda, de lés a lés, e recriar no terreno as alucinações, penas e tormentos do cavaleiro da triste figura.
A primeira paragem pode bem ser em Puerto Lápice (extraordinário topónimo!), na estalagem onde, reza a ficção, D. Quixote foi armado cavaleiro, pensando encontrar-se num castelo. Entremos, pois, no número 2 da calle El Molino.
«Quase todo aquele dia caminhou sem lhe acontecer nada de digno de ser contado, do que ele se desesperava, porque gostaria de achar imediatamente com quem experimentasse quanto valia o seu forte braço. Há autores que dizem que a primeira aventura que lhe aconteceu foi a de Puerto Lápice; outros dizem que a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar neste caso, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia e, ao anoitecer, o seu rocim e ele estavam cansados e mortos de fome; e, que, ao olhar para todas as partes para ver se descobria algum castelo ou algum aprisco de pastores onde recolher-se e remediar a sua muita fome e necessidade, viu, não longe do caminho por onde ia, uma estalagem, que foi como se visse uma estrela que não para as portas da entrada, mas para os alcáceres da sua redenção o encaminhava. Apressou-se a caminhar e alcançou-a quando anoitecia.
(...)
Seria a da alvorada quando D.Quixote saiu da estalagem, tão contente, tão airoso, tão alvoroçado por ver-se já armado cavaleiro, que o prazer rebentava-lhe pelas cilhas do cavalo. Mas vindo-lhe à memória os conselhos do seu hospedeiro acerca das provisões tão necessárias que devia levar consigo, especialmente a do dinheiro e das camisas, resolveu voltar a casa e prover-se de tudo, e de um escudeiro, fazendo conta de admitir um lavrador seu vizinho, que era pobre e tinha filhos, mas muito adequado para o ofício de escudeiro da cavalaria. Com este pensamento, guiou Rocinante para a sua aldeia, o qual, quase conhecendo a sua querença, com tanta vontade começou a caminhar que parecia não pousar os pés no chão.»
Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte I, caps. II, IV, pp. 43, 52.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.