Barcelona, Passeig de Gràcia 92

fotografia: filipe sousa | 25 junho 2017



























A arquitectura assombrosa de Gaudí e a ficção escatológica de Italo Calvino sobre o nosso tempo.

«Invasões frequentes atribularam a cidade de Teodora no decorrer dos séculos da sua história; por cada inimigo destroçado outro ganhava força e ameaçava a sobrevivência dos habitantes. Livre o céu dos condores, teve de enfrentar o crescimento das serpentes, o extermínio das aranhas deixou as  moscas multiplicar-se e negrejar; a vitória sobre as térmitas entregou a cidade nas mãos dos carunchos. Uma a uma as espécies inconciliáveis com a cidade tiveram de sucumbir e extinguiram-se. À força de dilacerar escamas e carapaças, de extirpar élitros e penas, os homens deram a Teodora a exclusiva imagem de cidade humana que ainda a distingue.
Mas antes, durante longos anos, ficou incerto se a vitória final não seria da última espécie que resta a disputar aos homens a posse da cidade: os ratos. De cada geração de roedores que os homens conseguiam exterminar, os poucos sobreviventes davam luz a uma prole mais aguerrida, invulnerável às ratoeiras e refractária a todos os venenos. No decorrer de poucas semanas, os subterrâneos de Teodora repovoavam-se de hordas de ratos invasores. Finalmente, com uma extrema hecatombe, o engenho mortífero e versátil dos homens venceu as abusadoras atitudes vitais dos inimigos.
A cidade, grande cemitério do reino animal, encerrou-se asséptica sobre os últimos cadáveres sepultados com as suas últimas pulgas e os últimos micróbios. O homem tinha finalmente restabelecido a ordem do mundo por ele mesmo abalada. Nenhuma outra espécie viva existia para o repor em causa. Para memória da que tinha sido a fauna, a biblioteca de Teodora conservava nas suas estantes os tomos de Buffon e de Lineu. 
Pelo menos os habitantes de Teodora assim o julgavam, longe de supor que uma fauna esquecida estava a despertar do letargo. Relegada durante longas eras em esconderijos longínquos, desde que fora apeada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna voltava à luz vinda das caves da biblioteca onde se guardam os incunábulos, lançava-se em grandes saltos dos capitéis e dos algerozes, empoleirava-se nas cabeceiras dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse da sua cidade.»

Italo Calvino, As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1990), trad. José Colaço Barreiros, editorial Teorema, Lisboa, 2002, pp. 160-161. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.