Olhos de Água

fotografia: filipe sousa | 23 dezembro 2022

 


















Mar camaleónico.

«O mar às vezes parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera. De manhã desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é extraordinário, quando a névoa espessa pouco e pouco se adelgaça, e surge atrás da última cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes bóiam na água, esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda que se desfaz e redemoinha até ao longe. E ainda outros azulados, com a cor das podridões. Tudo isso graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há momentos em que me julgo metido dentro duma esmeralda, e, depois, numa jóia esplêndida, dum azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem uma alma delicada e extática.»

Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Estante Editora, Aveiro, 1989, p. 115.

Ilhas Desertas (no horizonte)

fotografia: filipe sousa | 18 setembro 2022

 















Se há livro de António Mega Ferreira capaz de nos dar ao mesmo tempo a dimensão do seu pensamento, da sua obra, dos seus gostos e interesses, do seu espírito cultivado, e a que volto sempre, esse livro é “Uma Caligrafia de Prazeres” – com desenhos de Fernanda Fragateiro.
Nesse roteiro afectivo e íntimo convivem prazeres superlativos que vão da boa mesa aos melhores hotéis, das cidades marcantes, com Veneza à cabeça, ao urbanismo mais visionário, da alma do sapato à defesa da gravata!, passando por teatro, pintura, ópera, música e, claro, os livros, a sua grande paixão!
António Mega Ferreira partiu ontem, deixando um vasto legado ao futuro.

«Um só livro

Admitamos, por cedência ao lugar-comum literário, que as ilhas desertas ainda existem. E que, pressionado por um jornalista persistente, me cabia nomear um livro, um só livro, para levar comigo quando, por obscura razão, fosse obrigado a partir para a tal ilha deserta. Esse livro seria Ficções, de Jorge Luís Borges.
É claro que a leitura de Ficções não dispensa Cervantes, Sterne, Flaubert, Joyce, Nabokov. Mas, perante o desafio (a ameaça?) da ilha deserta, cabe aliviar a bagagem e levar apenas o essencial. Acresce que o exercício é um absoluto relativo, uma espécie de suplício intolerável que se impõe a um leitor: um livro? Só um livro? Convém escolher o que melhor engane a fome de outras leituras, recordando-se todas e em todas buscando a memória de uma outra vida. (...)
Numa ilha deserta, Ficções serve de bíblia a qualquer leitor compulsivo: é um livro interminável e, precisamente porque não é extenso, é a relativa escassez do seu texto que alimenta a elaboração incessante. Ficções é o guião virtual de todos os livros possíveis, a verificação hipotética da sua existência e a possibilidade da sua ainda não existência. Uma coisa e a outra são verosímeis dentro do universo mágico de Ficções

António Mega Ferreira, Uma Caligrafia de Prazeres, Texto Editores, Lisboa, 2003, pp. 16-17. 

Lagoa de Albufeira

fotografia: filipe sousa | 23 dezembro 2022

 

















A certa altura, deixa de haver pegadas no areal. À minha frente, quilómetros de praia selvagem sem vivalma. A caminho da Lagoa de Albufeira* estende-se o paraíso.

*Conhecida também por Lagoa d’el-Rei, por ser o retiro predilecto de D. Pedro V, onde vinha pescar e caçar coelhos, maçaricos e patos. Ramalho Ortigão dá disso nota nas Praias de Portugal, assim como o episódio de ter fisgado um polvo na Lagoa com uma navalha americana oferecida pelo amigo Eça de Queiroz.

«Um belo passeio de cerca de três léguas pela charneca até à Lagoa de El-Rei, o retiro predilecto de D. Pedro V. O pequeno e modesto prédio da casa real, de um só pavimento ao rés-do-chão, fica à beira do lago, na solidão da charneca. A paisagem é de uma grande melancolia simpática, de um encanto profundamente penetrante. A água tranquila da grande lagoa, o áspero aspecto da charneca, a grande solidão, a planície, o profundo silêncio, infundem uma pacificação e um sentimento de serenidade inefável. A lagoa é muito povoada, mas a pesca é proibida sem licença expressa do indivíduo que a arremata em cada ano. Não obstante, o autor destas linhas na última vez que ali foi apoderou-se de um polvo, fisgando-o contra uma rocha com uma navalha americana que o seu amigo Eça de Queiroz lhe mandou de presente das margens do Niagara. Fundámos o nosso direito a este polvo na circunstância de que a rocha não é água mas sim terra firme. Em todo o caso aproveitamos esta ocasião para desencarregarmos a consciência pedindo humildemente perdão a sua excelência o arrematante da lagoa e a sua majestade o proprietário dela. Estamos prontos a dar outro polvo, se a coroa assim o exigir. Os contornos do lago são habitados por óptimos coelhos, magros, mas de um especial sabor salgado e bravio. O sr. D. Pedro V matava-os na carreira, à bala, com notável perícia. A caça não tem arrematante e é permitida ao público. Além dos coelhos, que são abundantes, há maçaricos, patos e outras aves marinhas.»

Ramalho Ortigão, As praias de Portugal - guia do banhista e do viajante (1ª ed. 1876), Frenesi, Lisboa, 2001, pp. 151-152.

Avignon / Avinhão, Rue du Limas 49

fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2022

 


Um clássico intemporal.
No melhor pano cai a folha.

Feira Desmanchada

Num frouxo de riso, desmonto o barraco;
vida é outra loiça, que não este caco.

Rio como pode rir um português
ao ouvir ocioso: -Será para outra vez...

-Aqui há talento! Dizem-me os vedores.
Seja para alívio das nossas dores!

Mas que remédio senão ser talentoso
quando tudo anda tão nervoso

e não há licença de porte dessa arma
que é a palavra não desfigurada!

Talento manejado a meu talante,
sê modesto, já que és, afinal, o circunstante,

e eu, o teu dono, se tivesse lazer,
sem disparos verbais andava era aos pardais,

por esses trigais e milharais
que lhes dão de comer...

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Feira Cabisbaixa, 1965), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 251.

Sligeach / Sligo

fotografia: filipe sousa | 2 dezembro 2022

 


















De Sligo a Dublin. A Irlanda de costa a costa. Na companhia de W. B. Yeats (1865-1939), um dos mais importantes poetas irlandeses, que viveu nas duas cidades. E como não há ilhas sem mares, nem mares sem sereias...

The Mermaid

A mermaid found a swimming lad,
Picked him for her own,
Pressed her body to his body,
Laughed; and plunging down
Forgot in cruel happiness
That even lovers drown.

W. B. Yeats, "A Man Young And Old: III. The Mermaid.", The Tower. New York, Macmillan, 1928.

Cora Droma Rúisk / Carrick-on-Shannon

fotografia: filipe sousa | 2 dezembro 2022

 

















Carrick-on-Shannon (gaélico Cora Droma Rúisk).
Norte da República da Irlanda.

Carrick
 
I will not walk these roads of pain
I will turn back to youth again,
Tis fun  sunlight, though passed
the noon,
 
The night will not come very soon,
And if we haste we may lie down,
Before sunset in Carrick town.
 
 
No bigger than a bulrush,
I beside the rushy Shannon cry.
There are no children on the store,
The singing voices sing no more,
The sea draws all the rivers down,
And love has sailed from
Carrick town.
 
Susan Langstaff Mitchell
Poet, satirist, journalist, mystic, nationalist and agri campaigner of the Irish Renaissance
Born in Carrick-on-Shannon 1866
Died in Dublin 1926

Cruachan / Tulsk

fotografia: filipe sousa | 1 dezembro 2022









Ainda sob o signo da insularidade. Depois da Ilha de Gelo e Fogo, o regresso à Ilha Esmeralda.

«-O que procuras na Irlanda? - Seamas O'Hogain.
-...o pote de ouro do duende! - Corto Maltese.
-Como o irás encontrar? - Seamas O'Hogain.
-Encontrá-lo-ei no dia em que encontrar uma rapariga a chorar à beira do rio... Sinn Fein... Sozinhos os dois... - Corto Maltese.
-Sinn Fein... Sozinhos os dois. Bem-vindo à Irlanda, Corto Maltese. - Seamas O'Hogain.»

Hugo Pratt, «Concerto em O menor para Harpa e Nitroglicerina» in Corto Maltese - As Célticas (Les Celtiques, 1970), trad. Jorge Colaço, Edição Geomais, Estoril, 2019, p. 71.

Hjaltadalur

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 

















Não é todos os dias que nos perdemos, rendidos a tanta beleza, numa floresta boreal, no norte da Islândia. Primeiro, pela simples razão de que a Islândia não fica propriamente ao virar da esquina e, depois, porque as árvores não abundam na ilha, quanto mais falar em florestas!
Por isso, o meu encontro fortuito com a rara floresta do vale de Hjaltadalur só pode ser entendido como uma dádiva dos deuses das montanhas a amantes da natureza muito afortunados.
Sigamos, pois, fora dos caminhos e dos trilhos para nos adentrarmos na natureza selvagem da floresta.

«Uma floresta antiga terá muitas árvores antigas verdadeiramente grandes - algumas com copas irregulares, quebradas e musguentas, «sujas» com a enorme acumulação de matéria orgânica, a maioria delas com buracos e afectadas pela podridão. Incluirá árvores mortas ainda de pé e toneladas de troncos tombados. Estas características, embora não sejam desejadas pelos madeireiros (que consideram estes bosques «demasiado maduros») são aquilo que faz de uma floresta antiga algo mais do que um terreno arborizado: é um palácio de organismos, um paraíso para inúmeros seres vivos, um templo onde a vida investiga a fundo o puzzle que ela própria é. A actividade vital cai directamente no solo e no subsolo - a cobertura vegetal, a manta morta. Há térmitas, larvas, centopeias, aracnídeos, minhocas, artrópodes, bichos-de-conta, com os finos fios dos fungos a envolverem tudo.
(...)
Na floresta, o tempo que uma árvore caída leva até se decompor inteiramente é mais ou menos idêntico aos anos que teve de vida. Se as sociedades pudessem aprender a viver a esse ritmo não haveria penúria, nem extinções. Teríamos riachos límpidos, e os salmões regressariam sempre para a desova.
(...)
E depois vêem-se uns leves e compridos montículos - o último vestígio de um tronco há muito desaparecido. Uma linha recta de cogumelos a rebentarem num solo fofo é o último sinal, o derradeiro fantasma, de uma árvore que «morreu» há séculos.
Um tapete de árvores jovens - com tamanhos que variam entre os quinze centímetros e os seis metros - aguarda no solo da floresta que as árvores mortas tombem e libertem com isso um espaço maior no dossel. Soalheiro, ventoso, cálido, aberto, claro - contudo, estamos rodeados de árvores grandiosas. Os seus troncos enchem o céu e reflectem uma luz cálida e dourada.»

Gary Snyder, A Prática da Natureza Selvagem, (The Practice of the Wild, 1990), trad. José Miguel Silva, Antígona, Lisboa, 2018, pp. 169-170, 178-179, 180-181.

Hólar

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 






















Hólar.
Lugar remoto no norte da Islândia, perdido no mapa. Ainda assim, com uma população que ronda os cem habitantes, uma verdadeira multidão para o padrão demográfico e tipo de povoamento do interior da ilha.
A existência de uma igreja, rodeada por cemitério, e de uma universidade, mais o respectivo campus, neste vale profundo de Hjaltadalur, entre montanhas castanhas com neve nos cumes, não deixa de surpreender mesmo o mais prevenido dos forasteiros, como é o meu caso. É aqui que passarei os próximos três dias, isolado do mundo, entre céus azuis cristalinos e tempestades de neve.
Maravilha!

Curiosidade histórica: O bispado de Hólar foi fundado em 1106, nos primórdios do cristianismo na Islândia, para servir a parte norte da ilha, enquanto a parte sul era servida pelo bispado de Skálholt. A construção da primitiva igreja é, no entanto, anterior, datando do século XI. No século seguinte, foi fundado um seminário em Hólar, uma das primeiras instituições de ensino europeias. O seminário extinguiu-se em 1801, quando os dois bispados se juntaram, passando o único bispo a residir em Reykjavík. A igreja actual de Hólar foi construída entre 1759-1763, tendo sido utilizado arenito vermelho das montanhas vizinhas na sua construção. Os templos anteriores eram construções de madeira, com excepção de um de pedra, no século XIV, que nunca foi concluído. Desde 1882, Hólar é sede de uma Escola Superior de Agricultura, renomeada Universidade de Hólar, em 2007. Actualmente, são ministrados cursos de licenciatura e pós-graduação em Estudos Equinos (Hólar é um importante pólo de criação de cavalos islandeses), Aquacultura e Biologia de Peixes e Turismo Rural.

«Em cima dum pequeno monte na charneca estão os restos duma pequena quinta.
Talvez esse monte não seja, num sentido estrito, mais do que uma obra da natureza, talvez tenha sido obra de lavradores há muito falecidos que construíram aqui as suas quintas nas margens verdejantes do riacho, geração após geração, umas por cima das ruínas das outras. Ainda hoje continua a existir um curral para cordeiros, ali, onde há séculos atrás se ouviram ovelhas e crias a balir durante cem primaveras. Afastados do monte e do curral, especialmente para sul, estão espalhados prados amplos com ilhotas de urze, e através do espinhaço de Randsmyri corre um pequeno riacho e outro do lago para leste, pelos vales da charneca oriental. A norte do monte eleva-se uma montanha íngreme, as suas encostas estão marcadas por derrocadas e nas fendas existem relevos cobertos de urze. Das derrocadas erguem-se imponentes rochas escarpadas, e num certo lugar por cima do curral a montanha está rachada, tem uma fenda no basalto, e desta irrompe na Primavera uma cascata comprida e fina. E às vezes o vento do sul sopra na cascata, pulveriza a água para cima da borda da montanha e parece que a queda de água corre para trás. Debaixo da montanha estão pedregulhos espalhados por todo o lado.» 

Halldór Laxness, Gente independente (Sjálfstætt fólk, 1934-1935), trad. Guolaug Rún Margeirsdóttir, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2007, pp. 14-15.

Ísland / Islândia

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 






















Não sei se é o mais belo país, como muitos afirmam. Sei apenas que a Islândia é terra de vulcões e géiseres, de campos rugosos de lava escura, de montanhas nevadas, de glaciares e rios abundantes que correm a partir deles, de extensões de tundra a perder de vista, de planaltos onde pastoreiam cavalos e ovelhas em liberdade sem gente por perto, sacudida por ventos fortes e pelas ondas do Atlântico.
Uma sucessão vertiginosa de paisagens imaculadas, cenários agrestes, vastidões onde impera a lei dos elementos e do silêncio, que ajuda a explicar a afortunada viagem de quatrocentos quilómetros entre Reykjavíq e Hólar.
Não sei se a Islândia é o mais belo país, como muitos afirmam. O que sei é que é um dos últimos redutos de natureza selvagem do nosso mundo. Até ver.

«O vento torna-se transparente, a neve que voava em rajadas instala-se sobre a terra e torna-se um manto de silêncio: acima, o céu negro e o cintilar de estrelas tão antigas como o tempo.»

Jón Kalman Stefánsson, A tristeza dos anjos (Harmur englanna, 2009), trad. João Reis, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2014, p. 54.

«Via os vales profundos cruzarem-se em todos os sentidos, os precipícios abrirem-se como poços, os lagos transformarem-se em charcos, os rios tornarem-se regatos. À minha direita sucedia-se uma infinidade de glaciares e os picos multiplicavam-se, alguns deles enfeitados de leves fumos. A ondulação destas montanhas sem fim, a que as camadas de neve davam uma aparência de espuma, lembravam a superfície de um mar agitado. Se me virava para oriente, era o oceano majestoso como continuação dos cimos encapelados. Mal se percebia onde acabava a terra e começava o mar.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, p. 91.

Reykjavík / Reiquejavique, Skólavörðustígur

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022

 

















Reykjavíq. À letra, baía fumarenta. Cidade pequena e pacata, que se descobre numa manhã. As ruas são estreitas e amigas de peões e ciclistas. As casas irradiam alegria, com a paleta de cores do arco-íris. As mais belas são revestidas de madeira e painel sandwich. A felicidade anda no ar. O mar é presença de sempre, assim como o vento gelado. Até onde a vista alcança, para lá do golfo de Faxa, ergue-se a barreira do Snaefellness, a cratera vulcânica escolhida por Júlio Verne como entrada para o Centro da Terra. A nossa viagem é, porém, outra. Ou talvez não. Com o ocaso às 16 horas, resta-nos uma hora de claridade para os encantos da costa ocidental. Entre Reykjavíq e o próximo destino, no norte da ilha, distam uns bons quatrocentos quilómetros. Já estivemos mais longe do Círculo Polar Ártico.

«Perder-se uma pessoa nas ruas de Reiquejavique não é coisa fácil, por isso não fui obrigado a perguntar o caminho, o que em linguagem de gestos pode provocar muitos equívocos.
A cidade estende-se por um solo baixo e pantanoso, entre duas colinas. De um lado, uma massa de lavas desce em declive suave até ao mar. Do outro, abre-se a vasta baía de Faxa, limitada a norte pelo enorme glaciar do Sneffels, onde apenas a Valkyrie se encontrava ancorada no momento. 
(...)
Das duas ruas de Reiquejavique, a maior é paralela ao mar; moram aí os mercadores e os comerciantes, em cabanas de madeira feitas de vigas pintadas de vermelho, dispostas horizontalmente. A outra rua, mais para oeste, dirige-se para uma lagoa, e é ladeada pela casa do bispo e de outras pessoas não relacionadas com o comércio.
(...)
Em três horas visitei não só a cidade mas também os arredores. O aspecto geral era extraordinariamente triste. Sem árvores, sem vegetação, por assim dizer. Por toda a parte as arestas vivas das rochas vulcânicas.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, pp. 54-55.

Keflavík

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022


















Em Keflavík há três pontos cardeais: o vento, o mar e a eternidade.
Desprovida de qualquer valor, e não se conhece sítio onde o céu esteja mais distante da Terra.
Keflavík não existe.

«Prólogo

Deixemos algo bem claro antes de avançarmos e nos embrenharmos no que não compreendemos, no que não toleramos mas desejamos, naquilo que tememos e em simultâneo esperamos alcançar, e é importante clarificarmos isto para termos alguma coisa a que nos agarrar: estamos em Keflavík. Uma vila idiossincrática e remota, com poucos milhares de habitantes, um porto vazio, desemprego, stands de automóveis, carrinhas de comida de rua, uma povoação tão plana que, vista do céu, mais se assemelha a um mar estático. Em manhãs serenas, o Sol nasce como uma erupção vulcânica silenciosa. Vemo-lo quando o seu fogo surge atrás das montanhas distantes, como se algo gigantesco se erguesse das profundezas. É uma força capaz de içar o céu e alterar tudo, vemo-la quando a noite escura dá lugar ao fogo. Depois o Sol ergue-se. Ao início, como uma erupção vulcânica que varre as estrelas no céu, esses cães amistosos, e ascende majestosamente acima da península de Reykjanes. O Sol ergue-se devagar, e nós estamos vivos.»

Jón Kalman Stefánsson, Aproximadamente do tamanho do universo (Eitthvaó á stoeró vió alheiminn, 2013), trad. João Reis, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2020, p. 9.

Ísland / Islândia

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022

 

















-O que queres ser quando chegares à idade maior?
-Guardador de auroras boreais na Ilha de Gelo e Fogo. Ando a treinar para isso.
-A treinar para quê?
-Para guardador de auroras boreais e para chegar à idade maior. Ambas as coisas.
-Nada mau! E onde fica essa Ilha de Gelo e Fogo?

«-Esta é uma das melhores cartas da Islândia, da autoria de Handerson, e estou convencido de que ela nos vai dar a solução para todos os problemas.
Debrucei-me sobre o mapa.
-Vê aqui esta ilha composta de vulcões - disse o professor - e repara que têm todos o nome de Jökull. Esta palavra quer dizer «glaciar» em islandês, e dada a elevada latitude da Islândia, a maior parte das erupções produzem-se através das camadas de gelo. Donde a denominação de Jökull aplicada a todos os montes ignívomos da ilha.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, p. 32.

Manchester

fotografia: filipe sousa | 20 novembro 2022

 
























O paralelismo cronológico é sobejamente conhecido, mas vem a propósito evocá-lo. O planeta Terra tem 4,6 milhares de milhões de anos. Se passarmos esse vasto espaço de tempo a uma mais reduzida e manejável escala de 46 anos, o aparecimento do homem moderno corresponderá às últimas quatro horas. E a Revolução Industrial ter-se-á iniciado há um minuto, tempo ínfimo mas decisivo no curso da humanidade, pelas melhores e piores razões. Nada será como antes, bem pode dizer-se, com consequências de ordem social, económica, política, tecnológica e ambiental. Até chegarmos onde estamos hoje: bem perto do ponto de ruptura, ou de não retorno, se é que não o atingimos já! A contagem desses últimos sessenta segundos de tempo biológico começa justamente na cidade que tenho diante de mim. Manchester, o expoente máximo da primeira Revolução Industrial, laboratório do que viria a ser o capitalismo e o socialismo, berço do Partido Trabalhista. Assuntos a que espero voltar um dia quando vier com tempo para conhecer a cidade, o que subsiste da sua herança industrial, incluindo visitas aos Museus da Indústria e da História do Povo. Podia falar ainda do Museu Nacional de Futebol, que Manchester também acolhe, mas não me apetece de todo falar de futebol por estes dias, vá-se lá saber porquê! No entanto, sempre direi que a sorte dos migrantes que sacrificaram a vida ou que foram vítimas de exploração laboral durante a construção dos estádios no Catar não difere muito da dos operários dos complexos fabris da Revolução Industrial, há mais de duzentos anos!

Mas afinal, que faço eu em Manchester? Sou apenas um passageiro em fuga, com vontade de rumar ainda mais a norte, à procura de um lugar na Terra poupado às notícias do futebol e do Campeonato do Mundo e, mais importante, a salvo de injustiças. Haverá esse lugar?

«O rugido dos motores aumenta constantemente, e o avião traça uma rota através de campo aberto. Por esta altura, já deveríamos ter podido ver a massa espalhada de Manchester, mas não se via senão um leve vislumbre, como se surgisse de um incêndio quase sufocada em cinzas. Um manto de nevoeiro, erguido das planícies pantanosas que chegavam até ao mar da Irlanda, tinha coberto a cidade, uma cidade espalhada por mil quilómetros quadrados, construída de inúmeros tijolos e habitada por milhões de almas, vivas e mortas.»

H. G. Sebald, Os Emigrantes (The Emigrants, 1992), Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 108.

Berlin / Berlim

fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020

 

















«Não saber orientar-se numa cidade - talvez seja desinteressante e banal. Requer ignorância - nada mais. Mas perdermo-nos numa cidade - como nos perdemos numa floresta -, isso já exige uma formação muito diferente. As placas e os nomes de ruas, os transeuntes, telhados, quiosques ou tabernas têm de falar a quem anda por ali às voltas como um galho a estalar na floresta debaixo dos seus pés, como o grito medonho de um abetouro vindo de longe, como o silêncio súbito de uma clareira em cujo centro desabrocha um lírio.»

Walter Benjamim, Crónica Berlinense (Berliner Chronik, 1932), trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2021, p. 156.

EN 255-1

fotografia: filipe sousa | 6 novembro 2022














Um clássico intemporal.

«-Não me pouses a mala em cima das mudanças que me atrapalhas.
(...)
-Cuidado com a curva. Tu e a tua mania de cortar as curvas...»

Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, 3ª ed. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 76, 78.

Avignon / Avinhão, Place du Palais

fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2022

 

















Tenho por certo que a eleição de Lula da Silva é o melhor para a Amazónia, para os povos indígenas e para o combate às alterações climáticas.
Se dúvidas houvesse, bastaria atentar nos depoimentos pungentes dos seus líderes, que integram a mais recente exposição de Sebastião Salgado, para compreender o nível de predação infligido na floresta amazónica e a dimensão dos atropelos aos direitos das suas populações durante o consulado de Jair Bolsonaro.
Amazônia é um grande acontecimento artístico, um grito de denúncia, um manifesto em defesa da vida e da natureza, um repto inadiável para travar a desflorestação e restaurar habitats e a biodiversidade, de que todos dependemos.
Através da lente de Salgado, não nos resta senão perdermo-nos na selva em êxtase, acossados pelo «silêncio sinfónico» da música de Jean-Michel Jarre, que as palavras de Ferreira de Castro, com quase cem anos, conseguem, em grande medida, recriar:

«E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase.
(...)
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
(...)
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que vinha do Peru, da Bolívia, dos contrafortes dos Andes, veios que borbulhavam, blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia que o Pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica, do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas, engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência. Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náugragos tristes e amarrados.
(...)
A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quatro anos - mas um dia! Seria pelo esgotamento das seringueiras, seria pela intervenção dos selvagens, chacinando os desbravadores, seria por outro motivo - mas seria!
(...)
Toda a terra se arrepiava, voavam milhões de folhas desprendidas e não havia na maranha um só ramo que não se agitasse. Estreitavam-se e tremiam as copas exuberantes, parecendo, no seu desgrenhamento, não presas mas correndo na mesma direcção do vento, com louca velocidade. Era um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados e cada vez também o regente mostrava frenesi maior. A água plácida do igapó pusera-se já a ondular, porque a ventania rompera, enfim, a muralha do entrançado e viera soprar cá em baixo a sua ária estentorosa. E, de quando em quando, lá nas alturas, o bombo da orquestra infernal fazia-se ouvir com fragor. Multiplicavam-se as bichas que iluminavam, por súbito clarão, o manto pardo em que tudo se embrulhara. Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos turbilhonantes.»

Ferreira de Castro, A Selva (1930), 39ª ed, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, pp. 80, 88, 133-134, 145-146.

Avignon / Avinhão, Île de la Barthelasse

fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2022

 









Da ilha de Barthelasse, no Ródano, tem-se a melhor perspectiva da ponte de Saint Bénézet, cortada a meio do rio. Trata-se da famosa ponte d’Avignon celebrada no refrão da canção infantil: “Sur le pont d’Avignon/On y danse, on y danse/Sur le pont d’Avignon,/On y danse, tout en rond”. Porém, numa missa composta no século XVI, não se dançava sobre mas sob a ponte, numa alusão à sua diminuta largura, que não permitia a execução de farândolas nem sarabandas. Quando muito acolhia “os pífaros e os tamborins”, que não precisavam de tanto espaço, tendo as danças lugar junto dos arcos da ponte, nas margens do Ródano, como deixa entrever este trecho do escritor Alphonse Daudet (1840-1897) em:

«Quem não viu Avignon no tempo dos Papas não viu nada. Pela alegria, pela vida, pela animação, pelo ruído das festas, nunca se viu igual. De manhã à noite, sucediam-se as procissões, as peregrinações, as ruas juncadas de flores, atapetadas de grossas alcatifas, as chegadas dos cardeais pelo Ródano, bandeiras ao vento, galeras enfeitadas, os soldados do Papa cantando latim nas praças, as matracas dos irmãos mendicantes; das casas que se comprimiam em volta do grande palácio papal, como abelhas em volta da colmeia, zumbia o rac-rac dos teares de rendas, o vaivém das lançadeiras tecendo o ouro das casulas, os pequenos martelos dos cinzeladores de galhetas, os alaúdeiros ajustando as cordas, os cânticos das tecedeiras; e além de tudo isso, o badalar dos sinos e também os tamborins que se ouviam rufar, lá em baixo, para os lados da ponte. Porque entre nós, quando o povo está contente, é preciso que dance; e como nesse tempo, as ruas da cidade eram demasiado estreitas para a farândola, os pífaros e os tamborins postavam-se sobre a ponte de Avignon, ao vento fresco do Ródano, e, dia e noite, dançava-se, dançava-se...»

Alphonse Daudet, «A mula do Papa» («La mule du Pape», 30 outubro 1868 in Le Figaro) in Cartas do meu moinho (Lettres de mon molin, 1869), trad. Luís Engénio Ferreira, Atlântida, Coimbra, 1959, p. 18.

Séculos mais tarde, a companhia de bailado de Maurice Béjart (1927-2007), presença assídua no festival de teatro de Avinhão, recuperou essa memória da “dança sob a ponte”, como ilustra a fotografia patente no Jardin des Doms.
Hoje em dia, as coreografias podem ser outras, como as do grupo de jovens canoístas que encontrei a jogar às batalhas navais…debaixo da ponte.

Roma, Fórum, Atrium Vestae

fotografia: filipe sousa | 25 junho 2016

















«No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida. Fechou-se a primeira fase, em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a adoração, a admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao estado de mineral informe a que o seu escultor a tinha arrancado.
(...)
Elas passaram por essa decomposição sem agonia, por essa perda sem morte, essa sobrevivência sem ressurreição que é a da matéria entregue às suas próprias leis.»

Marguerite Yourcenar, O Tempo, esse grande escultor (Le Temps, ce grand sculpteur, 1954, 1982), trad. Helena Vaz da Silva, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2020, pp. 55, 59.

Safara, Rua Doutor Francisco Brito Simões Miranda

fotografia: filipe sousa | agosto 2006

 

















O último dos caleiros (embora todos os mourenses o sejam por apodo, naturais mas também adoptivos, bem entendido!).
Ó mulher cal braaaanca… Olhem que é cal branca mulheeeer…

«Em tempo de inverno todos os dias o fumeiro do lume era caiado. Quando necessário caiavas os baixinhos e anualmente toda a casa por dentro e também por fora se não estivesses de luto carregado, que até nisso se te manifestava o sentimento. Se a cal ia estando escassa no caqueiro começavas a andar inquieta, suspirando por um caleiro. A vila de Moura detinha o exclusivo do abastecimento de cal branca de grande parte da margem esquerda do Guadiana e um bom número de filhos seus percorriam as povoações no comércio da cal, que transportavam em carros acogulados das famosas pedras, puxados por parelhas de muares mais ou menos estafadas. Assim, não só pelo azeite, mas também pela cal, ficou famosa a notável vila, hoje digna cidade, ao ponto de cá na região os mourenses serem apodados de caleiros quando se pretende com eles fazer ironia.
Aqueles dignos profissionais pareciam todos escolhidos a dedo. Dotados de prodigiosas vozes de tremenda intensidade, embora de alturas e timbres diversos, a letra era sempre a mesma: Ó mulher cal braaaanca... Olhem que é cal branca mulheeeer... . Com esta lenga lenga acordei fulo, muitas vezes, às seis da manhã. Mas elas, afanosas, sobraçando o espartão adequado, lá iam comprar a arroba de cal, pesada na balança romana do vendedor, cuja língua se destravava se lhe chamavam a atenção para a escassez do peso ou para a má qualidade do produto. Brutos que nem caleiros, salvo seja quem não é.»

Bento Caldeira, «Oh Mulher Cal Braaaanca», Memórias de um médico (Clinicando no agro alentejano), Edições Colibri, Lisboa, 1992, pp. 48-49.

Praia da Rocha

fotografia: filipe sousa | agosto 1990

 















Com a Feira do Livro de Lisboa à porta, revisito esta apropriada memória. Subíamos, eu e a Clara, o Parque Eduardo VII, no dia 10 de Junho de 1991, quando, ao passarmos por um dos stands da Caminho, somos surpreendidos com a presença de Manuel da Fonseca. O escritor não se encontrava no exterior do stand, na área reservada para autógrafos e dedicatórias dos autores, como de costume. Estava, sim, no interior, atrás do balcão, sozinho, fazendo as vezes de um vendedor, recomendando os seus, mas também outros livros de outros autores da editora, e por isso o espanto de o vermos naquele papel e naquele sítio. Entabulámos conversa e acabámos a falar do Alentejo. Ele, do seu torrão natal: Santiago do Cacém. Nós, da intenção de trocarmos Lisboa pelo distrito de Portalegre, sem pressentirmos que o futuro há muito estava traçado e passaria por Moura, mais a sul. Antes da despedida, entre votos de sorte e felicidade, comprámos as suas Crónicas Algarvias, que fez questão de autografar “muito afectuosamente”. Trata-se de um dos melhores livros que conheço sobre o Algarve e um dos melhores sobre viagens escrito em português. Reúne as crónicas publicadas no vespertino A Capital, de 1 a 16 de Agosto de 1968. Vindo a lume apenas em 1986, inclui as partes cortadas pela Censura. A obra é pioneira na abordagem do que viria a ser o boom turístico do Algarve. A sua divisa resume-se a “o menos possível de paisagem”, pois “o que interessa são as pessoas”, como nesta passagem sobre a praia da Rocha:

«Para lá das arribas avermelhadas, a praia, que o bater das marés abriu às meias luas e cerca os leixões sanguíneos na enchente, corre, branca-e-oiro, para os lados de Alvor.
Em frente dos toldos, deitados na areia, corpos torram ao calor deste meio-dia de sol. Na água, há gente ao banho e à braçada. Cabeças que surgem, desaparecem ao compasso da vaga, que é como uma funda respiração do mar.
Como o bar da esplanada está fechado, e apenas funciona a venda de bilhetes-postais ilustrados e recordações da província, entro na casa de chá. Sento-me na única mesa livre da fila que dá para a praia, e peço uma cerveja. A meu lado, o bebé que dorme no carrinho é pretexto para a conversa com a senhora de idade. É a avó, como ela me disse. Os pais do bebé estão na praia. Mas devem chegar daí a pouco, pois vão sendo horas de ir almoçar.
Depois de umas tantas frases próprias de tais circunstâncias, refiro-me à praia da Rocha num certo sentido.
-Compreende-se - diz-me a senhora. -É a praia de maiores tradições de todo o Algarve. Há muitas moradias de portugueses. Muitos não são daqui, mas são moradias antigas que vão passando de pais para filhos. Também de ingleses e, agora, de alemães. É muito procurada por uma certa gente, a praia da Rocha. Como lhe disse, isso entende-se. Repare como tudo isto convida à calma e ao sossego. Na verdade é de férias o tempo que aqui se passa.
Eu, da minha mesa, e a senhora, da mesa ao lado, olhamos para o mar, para o azul intenso do céu, para o doirado da areia da praia.
-É a minha praia desde criança - recomeça a senhora de idade. -Os meus pais já vinham para aqui. Vim eu, depois, os meus filhos e, agora, esta minha netinha.
No sorriso bonito da velha senhora há a expressão agradada de quem sente, a demorar-se no tempo através de gerações, o prazer e a beleza daquela praia.
Olha de novo para o mar. Volta-se. E como a comunicar-me todas as boas recordações do passado, todas as alegrias do presente e as outras, as alegrias imaginadas no futuro, resume tudo isso em quatro palavras:
-A praia da Rocha!...»

Manuel da Fonseca, Crónicas algarvias (1ª ed. 1986), 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1987, pp. 213-215.  

Paris, Boulevard Marguerite-de-Rochechouart

fotografia: filipe sousa | 16 fevereiro 2022

 






















Foram as memórias de Paul Bowles da sua estada em Paris (1931-1932) que me conduziram até ao Perfume do Metro (Parfum du Métro), de que nunca ouvira falar. Aspergida a partir dos próprios comboios, a fragrância servia para amenizar o cheiro a borracha queimada, suor e esgotos acumulado nos subterrâneos da Cidade Luz. A eficácia do perfume surge bem demonstrada no final deste filme promocional dos anos 50: https://www.youtube.com/watch?v=8tPiSj2-7Fw
Não faltam referências sugestivas às “estações odoríferas” do metro parisiense: Lilas, Jasmin, Bel-Air.
Depois de um interregno, sem perfume, a RATP (Régie Autonome des Transports Parisiens) resolveu recentemente, no final dos anos 90, retomar a ideia e testar uma fragância chamada "Madeleine", composto de limão, lavanda, jasmim e almíscar. Com consumos de perto de duas toneladas de perfume por mês, o projecto revelou-se insustentável e voltou a ser abandonado. Hoje em dia, ao que pude apurar, tenta manter-se um cheiro aceitável no métro de Paris através de limpeza regular das estações e tratamento das infiltrações nos túneis. Com diferentes graus de sucesso...

«Dois anos antes, na minha primeira visita a Paris, eu perdera-me de amores pelo métro. Aquilo transportava uma pessoa pela cidade sem a fúria e o tumulto do metropolitano de Nova Iorque, que parecia estar sempre empenhado numa corrida contra o tempo. No metropolitano uma pessoa tinha a compulsão de olhar para o seu relógio; no métro, uma pessoa em vez disso procurava o DUBO-DUBON-DUBONNET. O cheiro do metropolitano nova-iorquino era o de metal quente misturado com esgotos portuários; o métro exalava um odor característico que se escapava das estações para a rua. Eu nunca cheirara aquela fragrância particular em mais lado algum, e para mim aquilo era um símbolo de Paris. Anos mais tarde, numa droguerie de Tânger descobri um desinfetante que vinha em três perfumes diferentes: Lavande, Citron e Parfum du Métro.»

Paul Bowles, «17 Quai Voltaire» (1931-1932), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 20.

Carrasqueira

fotografia: filipe sousa | 8 gosto 2022

 















Regresso ao porto palafítico da Carrasqueira, na baixa-mar, trinta e alguns anos depois. Um labirinto de passadiços avançando estuário do Sado adentro, onde os pescadores de hoje teimam em perpetuar a actividade dos primitivos concheiros, que por aqui viveram há milhares de anos. Apercebo-me de que o pontão principal foi alvo de melhoramentos, permitindo caminhar sem ser de forma instável, como outrora. A construção de uma lota é outra das novidades. Ainda assim, o espírito do lugar permanece intacto. Não há fotografias que consigam traduzir a beleza deste sítio. Único em Portugal e, ao que parece, em toda a Europa.

«Construção palafítica, erguida sobre estacas enterradas no lodo, à maneira dos avieiros, o porto da Carrasqueira parece ter crescido por ondas sucessivas, num entrançado de varas que se desenvolve suspenso sobre o sapal, num milagre de equilíbrio.»

José Manuel Fernandes, Maurício de Abreu, O Homem e o Mar - o litoral português, Círculo de Leitores, 1987, p. 140.

Serra da Arrábida

fotografia: filipe sousa | 8 agosto 2022

 















A manhã de ontem surgiu e manteve-se velada, camoniana, durante a travessia da serra: «(…) anda a névoa cega / sobre os montes da Arrábida viçosos, / enquanto a eles a luz do sol não chega.» Depois veio a tarde corroborar Camões e iluminar de vez «essa nesga mediterrânica entre terras e águas atlânticas», Orlando Ribeiro dixit. De facto, ao avistar o areal da Figueirinha a partir do convento franciscano foi como se tivesse visto, por instantes, Palombaggia ou algum paraíso de férias das ilhas gregas, com as suas enseadas escondidas e águas azul-turquesa.

«Com os enrugamentos calcários cavalgantes sobranceiros ao litoral, despenhando-se por escarpas brutais num mar de rara serenidade, franjada de baías luminosas fechadas por promontórios intransponíveis, a Arrábida é o único troço verdadeiramente mediterrâneo da costa portuguesa: tanto pela arquitectura do terreno, dobrado e cortado de grandes deslocações, como pelas águas tépidas, tranquilas e abrigadas, que mais parecem de um mar interior.»

Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1ª ed. 1945), 5ª ed., Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, p. 125.

Bordeaux / Bordéus, Quai Richelieu

fotografia: filipe sousa | 21 julho 2022

 















Na frente ribeirinha de Bordéus há passeios, ciclovias e equipamentos desportivos, como o Parc des Sports St. Michel, para todos os gostos e modos de exercitar o corpo: caminhada, bicicleta, trotinete, skate, patins, segway, futebol, vólei de praia, basquetebol, artes circenses e até uma espécie de pelota basca! Para os mais ociosos e contemplativos, há jardins de plantas vivazes (mais ecológicas, biodiversas, autóctones, resilientes, económicas e sazonais) para descansar, ler, imaginar, conversar, namorar e até rezar, neste caso virado para Meca, para a margem direita da Garonne.
Assim se mede a qualidade de vida e felicidade dos "bordelais".
Como sabiamente disse um filho desta terra, Montaigne, no século XVI:

«Si la vie n'est qu'un passage, sur le passage au moins semons des fleurs.»

Montaigne, Essais (1ère edition, 1580), Arléa, Paris, 2002, livre III, chapitre XIII, p.783.