Évora, Rossio de S. Brás

fotografia: filipe sousa | 26 novembro 2021

 
















Há semanas, o circo (da família) Monteiro abancou em Évora. Pretexto para evocar, lendo e ouvindo, «No circo Monteiro nunca chove», ou Portugal ao espelho, by Sérgio Godinho.

NO CIRCO MONTEIRO NUNCA CHOVE

No circo Monteiro nunca chove chuva
Punha com o laço e o palhaço a luva
Trapezistas, tropecistas virtuosos trapacistas
E nas contabilidades sempre equilibristas

O circo Monteiro é sempre ao sol, fá, mi, ré
O circo Monteiro é sempre em pé

No circo Monteiro nunca neva neve
Lá fora há borrasca e toda a rasca em breve
Mas cá dentro lantejoulas, acrobatas em ceroulas
Apanhados com as calças na mão pé ante pé

Mas se o circo Monteiro é marcha à ré, dó, si, lá
Lassa de manter o alvará
Mas se o circo Monteiro é marcha à ré, dó, si, lá
Lassa de manter o alvará

Contada a caixa baixam-se as lonas
E ó ironia era nas lonas que o circo se erguia
Contada a caixa baixam-se as lonas
E ó ironia era nas lonas que o circo se erguia

No circo Monteiro nunca venta o vento
Aqui o arco-irís não vira cinzento
Hipotecados os dentes restam sorrisos contentes
Vê-se no escuro da boca a luz ao fim do túnel

No circo Monteiro é sempre a Belle Époque
O circo Monteiro é flic flac flop
No circo Monteiro é sempre a Belle Époque
O circo Monteiro é flic flac flop

Contada a caixa baixam-se as lonas
E ó ironia era nas lonas que o circo se erguia
Contada a caixa baixam-se as lonas
E ó ironia era nas lonas que o circo se erguia 

No circo Monteiro não se esfria o frio
O calor das palmas dá-lhes às almas frio
Em cada bancada cada susto, espanto, gargalhada
Deixam sem tostões a caixa das reclamações

O circo Monteiro é português
Ai, zis, uis
Dum buraco só doutros azuis
O circo Monteiro é sempre ao sol, fá, mi, ré
O circo Monteiro é sempre em pé
Mas se o circo Monteiro é marcha à ré, dó, si, lá
Lassa de manter o alvará
O circo Monteiro é português
Ai, zis, uis
Dum buraco só doutros azuis

Sérgio Godinho, «No circo Monteiro nunca chove» in Ligação Directa, 2006.

Amareleja, Rua da Fábrica 2

fotografia: filipe sousa | 18 novembro 2021

 















Aqui de magnos cachos nos seduz
A promessa da vide, e o sol que luz
Apraz de sombras o passeio onde imos
Sem fim nem astro, sem dever nem cruz.

Seja dos maus atalhos das florestas,
Seja onde por janelas ou por frestas
Olhamos para o mundo pouco a pouco,
E o mundo é um ermo onde se movem festas.

Ah, bebe! A vida não é boa ou má.
O que lhe demos é o que ela dá.
Tudo é restituído ao que não foi.
E ninguém sabe o que é ou haverá.

Cansa ter tédios, sem que sejam mágoas.
Da rumorosa solidão das águas
Sobe na noite um som que 'stá connosco.
Ao despertar bebe vinho. Leio e apago-as.

Ah, vinde aqui onde há o vosso amigo,
Este velho Khayyam só inimigo
Não dos que buscam mas de eles buscarem
Khayyam em cujo lar não há postigo.

O esforço dura quanto dura a fé.
Mas quanto a quem não é dura o quê?
Ah, bebe, bebe, bebe, até 'squeceres
O como, donde, aonde, onde e porquê!

Trazes as rosas que te não pedi.
E mais que às rosas, vens trazer-me a ti.
Mas estou cheio só do entendimento
E tudo quanto tragas já perdi.

13-5-1931 

Fernando Pessoa, Canções de beber - Ruba'iyat na Obra de Fernando Pessoa, edição e prefácio Maria Aliete Galhoz, Assírio e Alvim, Lisboa, 2003, pp. 58-59. 

Moura, Estrada da Barca

fotografia: filipe sousa | 16 abril 2016

 
















É uma expressão latina atribuída a Santo Agostinho. «Solvitur ambulando», ou seja, «caminhar tudo resolve», «resolve-se caminhando». Fixada por Bruce Chatwin, séculos mais tarde, no The Songlines (O Canto Nómada, na tradução portuguesa), é uma espécie de fio condutor da sua deambulação de nove semanas pelo deserto australiano em busca das virtudes da errância. Uma ode à itinerância, ao movimento, ao nomadismo, à caminhada.
«Solvitur ambulando» é uma máxima que também faço minha, como um lema de vida. E que procuro praticar todos os fins-de-semana perto de casa, caminhando ou sobretudo correndo, enquanto não tenho possibilidade de sair para outros cenários e percorrer distâncias de maior fôlego. Dez quilómetros a levitar, entre Moura e o Guadiana (e vice-versa), na estrada mais bela do mundo (até ver!), são reparadores o suficiente para enfrentar a semana de trabalho e as agruras do quotidiano, permitindo-me desligar de mim e do mundo por momentos para, já refeito, reconciliar-me comigo e com o mundo. Nada contraditório! É uma terapia, uma necessidade, um escape, um impulso, um acto de purificação, um carregar de baterias, um prazer sem limites, chame-se o que se quiser, que me é vital para aliviar o corpo e a mente, para manter o equilíbrio, para rever o passado e projectar o futuro, para criar, arrumar e desarrumar ideias, para definir prioridades e fazer escolhas: «não sei para onde vou, não sei para onde vou – sei que não vou por aí!», como diria Régio.

A estrada da Barca chama-me de novo, amanhã. E sei que vou por aí, faça sol ou chuva!

Solvitur ambulando. «Caminhar tudo resolve».

Bruce Chatwin, O Canto Nómada (The Songlines, 1987), trad. José Luís Luna, Quetzal Editores, Lisboa, 1995, p. 213.

Venezia / Veneza

fotografia: filipe sousa | julho 2003

A primeira vez de Goethe em Veneza, neste dia 28 de Setembro, há 235 anos.

«Estava, pois, escrito na minha folha do livro do destino que no dia 28 de Setembro de 1786, às cinco da tarde pela nossa hora, eu veria pela primeira vez Veneza, entrando nas lagunas pelo Brenta, e pouco depois poria pé e olhos nesta maravilhosa cidade insular, nesta república de castores. E assim, Deus seja louvado, Veneza deixa de ser para mim mais uma palavra apenas, um nome oco que tantas vezes me assustou, a mim, o inimigo fidagal dos invólucros sonoros das palavras.
Quando a primeira gôndola se aproximou do nosso barco (fazem isso para transportar rapidamente para Veneza os passageiros que têm pressa), lembrei-me de um brinquedo antigo em que já não pensava há cerca de vinte anos. O meu pai tinha um belo modelo de gôndola, que trouxera da sua viagem: estimava-o muito, e para mim era uma grande honra o poder brincar com ele. Os primeiros bicos de chapa de ferro brilhante, as cabines pretas, tudo me recebia e saudava com se de velhos conhecimentos se tratasse, e eu deliciei-me com esta amável reminiscência da juventude, durante tanto tempo ausente.
Estou bem alojado na «Rainha de Inglaterra», não muito longe da Praça de S. Marcos, e esta é a grande vantagem deste alojamento; as minhas janelas dão para um canal estreito entre casa altas, mesmo por baixo fica uma ponte de um arco e em frente uma viela estreita e muito animada. É aqui que vivo, e aqui ficarei por algum tempo, até que a minha encomenda para a Alemanha fique pronta e eu me tenha saciado da sede de ver esta cidade. A solidão por que tantas vezes tinha ansiado, posso desfrutá-la plenamente agora; pois nunca nos sentimos tão solitários como entre a multidão, no meio da qual podemos andar incógnitos. Em Veneza talvez só uma pessoa me conheça, e tão depressa não é natural que me encontre.»

J.W.Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1787), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, pp. 78-79.

Tain-l'Hermitage

fotografia: filipe sousa | 23 setembro 2021

 















«A que velocidade, continuei eu, batendo as palmas, descerei o rápido Ródano, tendo o Vivarais à direita, e o Delfinado à esquerda, entrevendo apenas as antigas cidades de Vienne, Valence e Viviers. Que chama viva nas nossas lamparinas ao apanhar um cacho de uvas vermelhinhas de Hermitage e Côte rôti, enquanto passo disparado aos pés das videiras! e que fresco manancial no sangue! contemplar as margens aproximando-se e afastando-se, os castelos lendários, de onde cavaleiros corteses outrora libertaram os infelizes - e ver, vertiginosas, as rochas, as montanhas, as cataratas, e a Natureza cheia de pressa com todas as suas grandes obras em redor.»

Laurence Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, 1759 - 1767), trad. e not. Manuel Portela, Edições Antígona, Lisboa,1998, parte segunda, vol. VII, cap. XXIX, pp. 225-226.

Valence, Rhône / Ródano

fotografia: filipe sousa | 22 setembro 2021

 















«Gosto da vida, caminhando ao longo das margens do Ródano; paro debaixo de um salgueiro magnífico.»

Stendhal, Mémoires d'un touriste (1854), Éditions Gallimard, 1992, p.196.

Valence, Rue Denis Papin 38

fotografia: filipe sousa | 20 setembro 2021

 















«A bonomia, a naturalidade que já tinha notado em Vienne, brilha ainda mais em Valence; aqui estamos nós no Midi. Nunca fui capaz de resistir a esta impressão de alegria.»

Stendhal, Mémoires d'un touriste (1854), Éditions Gallimard, 1992, p.195.

Algures entre Lyon e Valence

fotografia: filipe sousa | 20 setembro 2021

















«Nenhum meio de transporte inspira uma observação mais pormenorizada do que o comboio ferroviário. Não há literatura da viagem aérea, nem grande coisa sobre as jornadas de autocarro, e os navios de cruzeiro inspiram observação social mas pouco mais. O comboio é útil porque uma pessoa que goste pode escrever (bem como dormir e comer) num comboio. A viagem calmante e sem tensão deixa profundas impressões da paisagem que passa e do próprio comboio. As viagens de avião são todas iguais; as jornadas ferroviárias são todas diferentes. O viajante ferroviário é frequentemente sociável, conversador, até liberto. Talvez seja por isso que pode andar por aí. Essa pessoa, esse estado de espírito, é aquilo a que os psicólogos chamam «solto» - esses estranhos são os melhores conversadores e os melhores ouvintes.»

Paul Theroux, A Arte da Viagem (The Tao of Travel, 2011), trad. José António Freitas e Silva, Quetzal Editores, Lisboa, 2021, p. 21.

Lisboa, Alameda das Comunidades Portuguesas

fotografia: filipe sousa | 20 setembro 2021


«L'avion est une machine sans doute, mais quel instrument d'analyse! C'est instrument nous fait découvrir le vrai visage de la terre. Les routes, en effet, durant des siècles, nous ont trompés. Nous ressemblions à cette souveraine qui désira visiter ces sujets et connaître s'ils se réjouissaient de son règne. Ses courtisans, afin de l'abuser , dressèrent sur son chemin quelques heureux décors et payèrent des figurants pour y danser. Hors du mince fil conducteur, elle n’entrevit rien de son royanme, et ne sut point qu’au large des campagnes ceux qui mouraient de faim la maudissaient.
Ainsi, cheminions-nous le long des routes sinueuses. Elles évitent les terres stériles, les rocs, les sables, elles épousent les besoins de l’homme et vont de fontaine en Fontaine. Elles conduisent les campagnards de leurs granges aux terres à blé, reçoivent au seuil des étables le bétail encore endormi et le versent, dans l’aube, aux luzernes. Elles joignent ce village à cet autre village, car de l’un à l’autre on se marie. Et si même l’une d’elles s’aventure à franchir un désert, la voilà qui fait vingt détours pour se réjouir des oásis.
Ainsi trompés par leurs inflexions comme par autant d’indulgents mensonges, ayant longé, au cours de nos voyages, tant de terres bien arrosées, tant de vergers, tant de prairies, nous avons longtemps embelli l’image de notre prison. Cette planète, nous l’avons crue humide et tendre.
Mais notre vue s’est aiguisée, et nous avons fait un progrès cruel. Avec l’avion, nous avons appris la ligne droite. A peine avons-nous décollé nous lâchons ces chemins qui s’inclinent vers les abreuvoirs et les étables, ou serpentent de ville en ville. Affranchis désormais  des servitudes bien-aimées, délivrés du besoin des fontaines, nous mettons le cap sur nos buts lontains. Alors seulement, du haut de nos trajectoites rectilignes, nous découvrons le subassement essentiel, l’assise de rocs, de sable, et de sel, où la vie, quelquefois, comme un peu de mousse au creux des ruines, ici et là se hasarde à fleurir.
Nous voilà donc changés en physiciens, en biologistes, examinant ces civilisations qui ornent des fonds de vallées, et, parfois, par miracle, s’épanouissent comme des parcs là où le climat les favorise. Nous voilà donc jugeant l’homme à l’échelle cosmique, l’observant à travers nos hublots, comme à travers des instruments d’étude. Nous voilà relisant notre histoire.»

Antoine de Saint-Exupéry, Terre des Hommes (1939), Éditions Gallimard, 1979, pp. 55-56.

Madrid, Calle de Claudio Moyano

fotografia: filipe sousa | 6 setembro 2021



«Passaram sem pressas diante do Museo do Prado e do gradeamento do Jardim Botânico antes de virarem à esquerda, subindo a ladeira da Claudio Moyano, deixando para trás o tráfego ruidoso e a contaminação da praceta de Atocha. O sol iluminava as barracas cinzentas e as bancas de livros escalonadas rua acima.

-O que vieste fazer a Madrid?»

Arturo Pérez-Reverte, O Cemitério dos Barcos sem Nome (La Carta Esférica, 2000), trad. Helena Pitta, Edições Asa, Porto, 2002, p. 59.

Madrid, Calle de Cervantes 2

fotografia: filipe sousa | 7 setembro 2021
















Ainda Madrid. De volta ao Bairro das Letras. Onde viveram Miguel de Cervantes (1547-1616) e Félix Lope de Vega (1562-1635), os mais ilustres representantes do Século de Ouro das letras espanholas. Chegaram a residir na mesma rua, após o autor de D. Quixote ter trocado o número 18 da calle de las Huertas, onde se situa, desde 1827, a Casa Alberto, um dos mais icónicos estabelecimentos de tapas da cidade, pelo número 2 da calle de Cervantes.
Apesar de vizinhos (Lope de Vega morava no número 11), não morriam de amores um pelo outro, como provam os poemas satíricos em que se desacreditavam mutuamente. Neste ambiente de rivalidade permanente, triunfou o prolífico Lope de Vega, autor de mais de 2.000 peças de teatro. Quanto a Cervantes, ainda que reconhecido em vida devido ao sucesso alcançado com o seu D. Quixote, acabaria por morrer pobre.
Já perto do fim, manifestou o desejo de ser sepultado no convento das Trinitárias Descalças, situado no número 18 da calle Lope de Vega, paralela à calle de Cervantes e à calle de las Huertas, em sinal de agradecimento aos monges trinitários que, em 1580, reuniram o resgate necessário para o libertar do cativeiro, em Argel, um dos muitos episódios da sua vida atribulada.
Desengane-se, porém, quem espere encontrar aí os restos mortais do "Príncipe dos Engenhos".

«A casa onde Cervantes viveu e morreu encontra-se, naturalmente, na calle de Cervantes, a mesma rua onde nesses dias vivia Lope de Vega, embora a rua tivesse então outro nome. Agora há duas ruas antigas e estreitas, próximas uma da outra, com os nomes destes dois grandes das letras espanholas que, como costuma acontecer nos meios literários, muito mal diziam um do outro. Lope de Vega era o autor de êxito do seu tempo, o homem das duas mil peças de teatro e «vinte e um milhões de versos», enquanto Cervantes levava uma vida aventureira, participava em batalhas marítimas, ficou ferido, foi preso por corsários berberes e viveu, juntamente com o irmão, durante cinco anos como escravo no Norte de África até ser resgatado por um monge. (…)
É de manhã cedo numa segunda-feira que erro pelas duas ruas com os nomes dos escritores. (…) Por fim, encontro a casa de Cervantes. É o número 2. (…) Na rua contígua encontro o convento onde Cervantes está enterrado. Segundo a placa na fachada era um convento das Trinitárias e o escritor foi aí enterrado a seu pedido, por ter sido um trinitário que o salvou da escravidão.
Com alguma dificuldade abro a porta e entro num espaço escuro onde se encontra uma outra porta, entreaberta. Agora estou perante o que é claramente a porta de uma igreja, mas esta está fechada. Nisto ouço uma outra porta abrir lentamente e vejo duas cabeças de freiras a olharem para mim. «Cervantes está enterrado aqui?» pergunto, e a resposta é muito espanhola: «Está sim, mas não está cá». Digo que mesmo assim gostaria de dar uma vista de olhos à igreja, mas não é possível. A missa terminou e então fecha-se a igreja.
-Mas há pelo menos uma sepultura?
-Não, não há propriamente uma sepultura.
Este escritor apagou minuciosamente o seu rasto, porém não se escapa tão facilmente à posteridade. Perto das Cortes encontra-se uma estátua num pequeno jardim triangular.»
 
Cees Nooteboom, O (Des)Caminho para Santiago(De Omweg Naar Santiago, 1992), trad. Patrícia Couto e Arie Pos, Asa Editores, Porto, 2003, pp. 98-100. 

Madrid, Gran Vía

fotografia: filipe sousa | 9 setembro 2021

 





















«Os homens e as mulheres, que vão àquelas horas até Madrid, são os noctívagos puros, os que saem por sair, os que têm o gosto de perder as noites; os clientes endinheirados dos cabarés, dos cafés da Gran Vía, cheios de mulheres perfumadas e provocadoras, que usam o cabelo pintado e um impressionante casaco de peles, de cor escura, e alguma boquilha branca de vez em quando; ou os noctívagos de bolsa mais magra, que se metem a conversar numa tertúlia ou que vão beber copos pelas tascas. Tudo menos ficar em casa.»

Camilo José Cela, A Colmeia (La Colmena, 1951) trad. Victor Filipe, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 136.

Madrid, Parque de El Retiro

fotografia: filipe sousa | 6 setembro 2021

 















«-Podemos obter um apartamento em Madrid, naquela rua ao lado do Parque del Buen Retiro. Eu conheço uma americana que alugava apartamentos lá, antes do movimento, e sei como hei-de encontrar um apartamento assim pelo preço de antes do movimento. Há uns que ficam em frente do parque, e vê-se o parque todo pela janela; a grade de ferro, os jardins, as alamedas com passeios de saibro bem cuidado, as ervas dos canteiros, que ladeiam os passeios, e as árvores que dão profundas sombras e todas as fontes. Os castanheiros devem estar agora em flor. Em Madrid poderemos passear no parque e remar no lago se já estiver outra vez com água.
-E porque não há-de ter água?
-Secaram-no em Novembro por se ter tornado um ponto de referência para os bombardeamentos aéreos. Julgo que já deve estar agora cheio de água, mas não tenho a certeza. Mas mesmo que não esteja podemos passear no parque para além do lago. Há nele um trecho que é uma verdadeira floresta com árvores de todos os países do Mundo: têm o nome escrito em tabuletas que dizem que árvores são e de que país vêm.
-Gostaria muito de ir ao cinema – disse Maria. -Mas as árvores devem ser interessantes e fixá-las-ei todas contigo se for capaz de me lembrar.
-Não estão ali como num museu. Crescem naturalmente, e há colinas no parque e um pedaço que parece uma floresta virgem.»

Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram (For whom the bell tolls, 1940) trad. Monteiro Lobato, edição Livros do Brasil, Lisboa, 1955, pp. 331-332. 

Madrid

fotografia: pedro sousa | 5 setembro 2021

 














«Vi Madrid surgir da planície, massa branca e composta no cimo de uma pequena altura ao fundo de uma região comida pelo sol.»

Ernest Hemingway, Fiesta (The Sun also rises, 1926) trad. Jorge de Sena, Editora Ulisseia, Lisboa, 1985, pp. 210-211.

Castilla - La Mancha / Castela - La Mancha

fotografia: filipe sousa | 14 abril 2019

 















«O viajante levanta-se, passeia pelo quarto, põe direito um quadro, empurra um livro, cheira umas flores. Diante de um mapa da península detém-se, ambas as mãos nos bolsos das calças, as sobrancelhas quase imperceptivelmente franzidas. (…) 
O viajante faz um gesto com a boca.
-E também não importa se me desviar um pouco, se é que me desvio. Afinal de contas, qual é o problema? Ninguém me obriga a nada; ninguém me diz: vá por aqui, suba por ali, percorra aquele outeiro, esta encostazinha, este outro vale suave e de bom caminhar.
O viajante remexe nos papéis da mesa à procura dum duplo decímetro. Encontra-o, aproxima-se de novo da parede e, com o cigarro na boca e o sobrolho franzido para que os olhos não se encham de fumo, passeia a régua sobre o mapa.
-Etapas nem curtas nem longas, outra légua e outra hora, e assim até ao fim. Vinte ou vinte e cinco quilómetros por dia já é uma boa marcha; é passar as manhãs no caminho. Depois, sobre o terreno, todos estes projectos caem em saco roto e as coisas saem, como sempre acontece, como podem.
Procura umas notas, consulta uma cadernetazita, folheia uma velha geografia, estende sobre a mesa um plano da região.
-Sim; sem dúvida alguma, as regiões naturais. Os rios unem e as montanhas separam, é a velha sabedoria: não há outra divisão que valha. (…)
-As cidades, passarei à beira delas, como os bufarinheiros e os ciganos, como o javali e o gato montês.
Coça uma sobrancelha e franze a testa. O viajante não está muito convencido.
-Ou não, não passarei à beira. As cidades têm de ser atravessadas, a meio da tarde, quando as meninas saem a passear um bocado, antes do terço.
O viajante sorri. Tem os olhos semifechados, como de estar a sonhar.
-Bem, logo veremos.
Fica um bocado em silêncio, a pensar muito confuso, muito precipitadamente. Já é muito tarde.
-Que loucura!
O viajante – que se cansa de repente, como um pássaro ferido – pensa, afinal, que já só falta começar, que talvez esteja a dar muitas voltas à cabeça por uma viagem que se pretende fazer a eito, um pouco como o fogo numa eira: ao deus-dará e ao calhas.
Da mesma garrafa bebe o último gole.
-Não. Estas contas são outras; o melhor será pegar na mochila e desatar a andar.»

Camilo José Cela, Vagabundo ao serviço de Espanha (Vagabundo al servício de España, 1948), trad. Cristina Rodriguez, Artur Guerra, Edições Asa, Porto, 1995, pp. 12-14.

Fonte da Telha

fotografia: filipe sousa | 28 agosto 2021

 






















É um ritual que procuro cumprir com a regularidade possível, após ter trocado o litoral pelo interior, completam-se trinta anos dentro de dias. Ontem, voltei a reviver o passado na Mata dos Medos, sobre a arriba fóssil da Costa da Caparica e, mais abaixo, a imensidão do areal que se estende da Cova do Vapor até perto do Cabo Espichel. Perdi a conta às vezes que atravessei este pinhal a caminho da praia ou percorri o trajecto Fonte da Telha-Lagoa da Albufeira-Fonte da Telha, à beira-mar, na maré-baixa. Desta vez não desci à praia, apesar do ar abafado e do mar flat, convidativo a banhos. Contentei-me com a vista deslumbrante e a companhia de Raul Brandão.

«Uma grande extensão de areal, só areia e mar, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. Nem um penedo. Areia e céu, mar e céu. Dum lado o formidável paredão vermelho, a pique, desmaiando pouco a pouco, até entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. Do outro o mar azul metendo-se, num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto é esplêndido é acolá do alto do convento dos Capuchos. Assombro de luz e cor. Amplidão. As casotas da Caparica aos pés, o mar ilimitado em frente, ao fundo e à direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no primeiro plano esparsas num verdo-amarelado... E luz? E o prodígio da luz?... A gente está tão afeita à luz que não repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as águas verdes desmaiadas e sobre as terra amarelas e vermelhas até ao cabo Espichel... Mas fecho os olhos - abro os olhos... Imensa vida azul - jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul estremece e vem até mim em constante vibração. Quem sai da obscuridade para a luz é que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia...» 

Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Estante Editora, Aveiro, 1989, pp. 164-165.

Moura, Estrada da Barca

fotografia: filipe sousa | 29 julho 2021

 






















O Novo Mundo às portas de Moura.

«Custa a acreditar que a piteira não viva aqui desde sempre, que tenha sido trazida de fora e aclimatada a estas latitudes: veio apenas há cinco séculos do Novo Mundo (...). Tomou raízes num solo magro que a sustém e que também ela retém, obstando ao seu esboroamento (...). Não sabemos o que é que, antes dela, impedia nas escarpas que os torrões de terra e os calhaus viessem por ali abaixo. É preciso ver brotar da piteira, nas hastes às vezes com vários metros de altura, as suas flores de corolas loiras que parecem cibórios, vê-la esgotar-se inteiramente nessa única floração e secar até à raiz, para compreender que é originária de climas mais cruéis que o do Mediterrâneo.»

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, pp. 95-96. 

Fonte Souto de Baixo

fotografia: pedro sousa | 18 agosto 2020

 


«Uma vez na minha vida fiz mais: ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira. Foi depois da minha visita a Osroés, durante a travessia do deserto sírio. Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas todos os cuidados humanos, entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da constelação da Lira, estrela polar dos homens que hão-de viver dezenas de milhares de anos depois de nós termos deixado de existir, resplandecia por cima da minha cabeça. Os Gémeos luziam frouxamente nos últimos clarões do poente; a Serpente precedia o Sagitário; a Águia subia para o zénite, as asas abertas, e a seus pés a constelação ainda não designada pelos astrónomos e à qual dei o mais querido dos nomes. A noite, nunca tão completa como julgam os que vivem e dormem em quartos, tornou-se mais escura, depois mais clara. As fogueiras, acesas para espantar os chacais, apagaram-se; aqueles montes de carvões ardentes fizeram-me lembrar o meu avô, de pé na sua vinha, e as suas profecias tornadas presente e pouco depois passado. Tentei unir-me  ao divino sob várias formas; conheci mais de um êxtase; há alguns atrozes e outros de uma perturbante doçura. O da noite síria foi estranhamente lúcido. Gravou em mim os movimentos celestes com uma precisão que nenhuma outra observação parcial me teria jamais permitido atingir.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, pp. 127-128.

Serra de S. Mamede

fotografia: filipe sousa | 15 julho 2021

 

























Com 1025 metros acima do nível do mar, a serra de S. Mamede granjeia os títulos de Everest do Alentejo e tecto do Sul de Portugal. Ontem, foi dia de subir ao cume.

«A Serra de S. Mamede é, ao Sul do Tejo, o relevo mais alto a destacar-se nos vastos peneplanos e planícies do Alentejo. A sua direcção NO.-SE. contrasta  com a do maior número das formações montanhosas que se encontram  na metade setentrional do nosso território. É, no seu conjunto, a continuação das serras espanholas que pertencem ao sistema toledano. Entre a parte O. da massa orográfica espanhola e a de S. Mamede um vale marca uma divisória entre os dois países contíguos, embora a fronteira não siga exactamente essa feição natural.
Distingue-se esta serra pelo seu carácter peneplano, sem arestas agudas de lombada facilmente transitável, revelando uma longa acção demolidora dos agentes externos.
Do seu vértice, a 1025 m., a vista alcança uma enorme superfície, e em dias muito claros o horizonte alarga-se consideravelmente até ao mar, permitindo reconhecer os sucessivos degraus de que se compõe o sul do Tejo.
A paisagem que se observa do alto é diferente conforme nos voltamos a leste, oeste ou norte. Do lado de Espanha mostram-se  pequenos relevos descarnados, simétricos e piramidais, com afloramentos rochosos cuja silhueta se esbate à medida que se afastam da fronteira; a O. desenrola-se a vasta planura alentejana, semeada aqui e além de relevos-testemunhas; e ao N., para lá do Tejo, descortina-se um arco de montanhas em semicírculo, que se desdobra desde a serra da Penha Garcia, pela Gardunha e a Estrela, até à de Muradal-Nisa, que se interrompe bruscamente para reaparecer na serra de Portalegre. Quando a atmosfera está sem bruma, vê-se distintamente uma grande parte do plano inclinado do distrito de Castelo Branco  que vem morrer  ao Tejo fronteiriço, onde se lançam as ribeiras do  Elges, Aravil e Pônsul.»

Silva Teles, "À Serra de S. Mamede" in Guia de Portugal, vol. II - Estremadura, Alentejo, Algarve, 2ª reimpressão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991, pp. 425-426. 

Odres

fotografia: filipe sousa | 13 julho 2021
















«Também as ordens e as arcadas se juntam num tipo de edifícios que já mencionámos como caracteristicamente romano: as termas. Com um plano simétrico e calor graduado (uma piscina - natatio ou frigidarium, banhos mornos - tepidarium; e quentes - caldarium) local para as pessoas se despirem (apodyterium) e para fazerem exercícios (palaestra), salas de massagens, restaurantes, bibliotecas, salas para leituras públicas, solários, lojas, exterior com parques, estes edifícios monumentais e polivalentes atraíam multidões ruidosas1 e eram objecto de ostentação, logo, de publicidade, dos seus patronos. Assim, não admira que os imperadores se tenham empenhado em tais construções. Nero, Trajano, Caracala, Diocleciano o fizeram2. Na Roma imperial, é aí que decorre grande parte da vida social da cidade.»

1 Sobre a agitação de umas termas, é muito elucidativa a Carta 56 do Livro VI das Cartas a Lucílio, de Séneca, que quis provar, morando acima de um desses estabelecimentos, que o sábio pode recolher-se, sempre que queira, na sua meditação. O filósofo fala do ruído ensurdecedor proveniente de um sem número de actividades que se processavam no local: desde a queda dos banhistas nas águas da piscina aos atletas que gemiam sob os pesos que levantavam, aos jogos de bola, ao depilador, ao pregão do vendedor de bebidas, de salsichas e de outros alimentos.

2 As mais antigas de que há notícia foram erigidas por Agripa, mas já no seu tempo atingiram a cifra de cento e setenta. De modelo principal serviram as de Trajano. as mais bem conservadas são as de Caracala e as de Diocleciano (nestas últimas está hoje instalado o Museo delle Terme).

Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, II volume - Cultura Romana, 1ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984, pp. 444-445.  

Lisboa, castelo de S. Jorge

fotografia: filipe sousa |  7 julho 2021

 
















Lisboa segundo um seu ilustre visitante, no início do século XII, de nome completo Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti, ou simplesmente al-Idrisi ou Edrici, geógrafo árabe ao serviço de Roger II, rei normando da Sicília.

«Lisboa ergue-se na margem de um rio que se chama Tejo ou rio de Toledo. A sua largura junto de Lisboa é de 6 milhas e a maré faz-se sentir aí vivamente. Esta bela cidade estende-se ao longo do rio, está cercada de muralhas e é protegida por um castelo. No centro da cidade existe uma fonte de água quente, tanto no Verão como no Inverno.
Situada nas proximidades do Mar Tenebroso, esta cidade tem à sua frente, na margem oposta e junto à foz do rio, o forte de Almada (1) , assim chamado porque o mar lança palhetas de ouro sobre a margem. Durante o Inverno, os habitantes da região vão junto do forte à procura desse metal e entregam-se à faina com maior ou menor sucesso enquanto dura a estação rigorosa. É um facto curioso de que eu próprio fui testemunha.» 

(1) A Mina

Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti (simplesmente al-Idrisi ou Edrici), século XII, in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe - vol. 1 Geografia e Cultura, 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1989, p. 68. 

Siena, Piazza del Campo

fotografia: filipe sousa | 6 julho 2021


«Entro num bar para beber um café. O empregado atende-me com a voz e o sorriso de Siena. Sinto-me fora do mundo. Desço ao Campo, uma praça inclinada e curva como uma concha, que os construtores não quiseram alisar e que assim ficou, para que fosse uma obra-prima. Coloco-me no meio dela como num regaço e olho os prédios de Siena, casas antiquíssimas onde gostaria de poder viver um dia, onde tivesse uma janela que me pertencesse, voltada para os telhados cor de barro, para as portadas verdes das janelas, a tentar decifrar donde vem este segredo que Siena murmura e que eu vou continuar a ouvir, mesmo que o não entenda, até ao fim da vida.»  

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - Ensaio de romance, 1ª edição, Moraes Editores, Lisboa, p. 212.

Estrada Nacional 258 | GPS 38.117258; -7.259771

fotografia: filipe sousa | 20 junho 2021
















O VERÃO

Afaga o ardor 
da palha
antes da manhã.

Prepara a semente
do sol.

Respira devagar,
grão a grão,

o azul,

o frio,
implacável,
azul do verão.

Arranca à terra escura
o difícil silêncio
sem lágrimas nem figura:

não tens outra flor,
não tens outro irmão.

Eugénio de Andrade, «Obscuro Domínio» (1970-1971), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., p. 185.

Puerto Lápice, Calle El Molino 2

fotografia: filipe sousa | 8 março 2020

 




Luís Miguel Cintra, ontem, no Público, a propósito da sua mais recente criação como encenador, Pequeno Teatro — Ad Usum Delphini Vanitas, construído a partir de diálogos retirados de D. Quixote de La Mancha: «Aquela figura (D. Quixote) sonha com ideais de beleza, de lealdade, de amizade — tem uma utopia de vida. O que é engraçado é que acredita que será possível realizar essa utopia. Não a vive como utopia. Isso é importante porque, mais modernamente, quando se fala de utopia está a dizer-se que são ideais falhados. Mas não são falhados, são desejados, e mesmo que se considere que é difícil serem alcançados, deixa de ser desejo se não se acreditar que pode realizar-se. Quem mudará o mundo são os que acreditam na utopia e a gente vive numa época de um pragmatismo horrível. Um mundo em que já não existe a crença numa mudança, há antes um cinismo permanente que me horroriza.»
Um espectáculo pela utopia e pelos ideais, contra o cinismo e o calculismo vigentes, no Museu das Marionetas, Lisboa, de 17 de Junho a 8 de Julho.

«-Quisera eu, senhor duque - respondeu D.Quixote -, que estivesse aqui presente aquele bendito religioso que à mesa, no outro dia, mostrou ter tão más maneiras e má vontade contra os cavaleiros andantes, para que visse com os próprios olhos se os tais cavaleiros são necessários no mundo: veria com os seus olhos que os extraordinariamente aflitos e desprezados, em casos importantes e em desditas enormes não vão buscar o seu remédio às casas dos letrados, nem às dos sacristães das aldeias, nem ao cavaleiro a quem nunca sucedeu sair dos confins da sua aldeia, nem ao indolente cortesão que mais procura novas para dizê-las e contá-las que fazer obras e façanhas para que outros as contem e as escrevam; o remédio das aflições, o socorro das necessidades, o amparo das donzelas, o consolo das viúvas, em nenhuma espécie de pessoas se acha melhor que nos cavaleiros andantes, e por eu o ser dou infinitas graças ao céu, e dou por muito bem empregado qualquer acontecimento infeliz e trabalho que neste honroso exercício possa suceder-me.»
(...)
-Sem dúvida este teu amo, Sancho amigo, deve ser um louco.
-Como deve? - respondeu Sancho. - Não deve nada a ninguém: pois paga tudo, e mais quando a moeda é loucura. Bem o vejo eu e bem lho digo a ele. Mas - que adianta?»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte II, caps. XXXVI, LXVI, pp. 716,898,899.

Moura, Estrada da Barca

fotografia: filipe sousa | 12 junho 2021

 















«Abro um parêntese para frisar que as pétalas secas do cardo leiteiro, ou cardo do coalho, constituem o único coagulante oficialmente autorizado no fabrico do Queijo de Serpa. A tradição assim o impôs uma vez que as terras de barro da região são pródigas na produção espontânea de tão bela e utilitária planta.
(...)
Após a filtragem e a salga, procede-se às tarefas de coagulação. A sua «velocidade» tem a ver com a consistência da massa. Não se pergunte ao artesão queijeiro o porquê desta relação. Ele só sabe que a massa fica tanto mais rija quanto mais rápida for a formação da coalhada. Por isso ao adicionar-se ao leite a infusão de cardo levemente aquecida, esta não pode provocar a a aceleração exagerada do coalho nem, pelo contrário, demorá-lo excessivamente.
A coagulação rápida gera queijos ásperos, com sabor acentuado a cardo. A sua demora dá origem a queijos de paladar indefinido e de maturação complicada.
A infusão que se adiciona ao leite é feita com antecipação de um dia. O roupeiro pisa o cardo no almofariz com um pouco de sal. Mete depois a mistura num recipiente de louça, adicionando-lhe água quanto baste, deixando-a ficar até ao dia seguinte.
Antes da sua incorporação côa-se a mistura através de um pano para evitar a passagem das partículas do cardo. Depois inicia-se a operação. Com a lentidão de um ritual, o roupeiro vai deitando o fermento no assado, vasilha de barro com duas asas onde o leite permanece coado e previamente salgado. Pausadamente a mistura vai sendo homogeneizada com o palheto, espécie de grande espátula de pau. Está-se no domínio da alquimia. A quantidade administrada é ditada pela sensibilidade prática do mestre. Está escrito na sua cartilha que a duração óptima da coalhada deve rondar os noventa minutos. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Mas o roupeiro ainda há de referir que tudo isso varia com a «força» do cardo, a qualidade do leite, a quantidade de sal utilizado...Não vale a pena pedir explicações particularizadas, porque o roupeiro remeterá para os domínios da sua sensibilidade - e aí não há nada a fazer.»

João Mário Caldeira, Margem Esquerda do Guadiana - as gentes, a terra, os bichos, Contexto Editora, Lisboa, 2000, pp. 68-70.

Bordeaux / Bordéus, Pont de Pierre

fotografia: filipe sousa | 7 janeiro 2020



ELOGIO BARROCO DA BICICLETA

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho, que  seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corridas, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 348.

Mediterrâneo, Palombaggia

fotografia: filipe sousa | outubro 2005

 






















Para lá da espuma dos dias, fica a espuma essencial que nos mantém à tona, como a das águas turquesas de Palombaggia.

«Normalmente fala-se da espuma em termos gerais ou pedantes, a maioria das vezes a propósito das vagas e do vento. As analogias com a ligeireza ou a frivolidade, a facúndia ou a fecundidade, mais não são que comparações: não dizem o que é, de facto, a espuma. Raros são aqueles que pretendem saber o seu volume, a sua composição, se é salgada como o mar, porque é que este a rejeita com tanta obstinação para a praia, e em que quantidades. De resto, não se sabe bem se se pode falar de quantidades a propósito dela. Não esqueçamos também a diferença entre a espuma que flutua no mar e a que se depõe na praia: dificilmente se deixam dissociar, embora por vezes se excluam uma à outra. Ambas nos são familiares e cada uma tem o seu lugar. Não há espuma no mar Morto.» 

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, p. 44. 

Ponta de São Lourenço

fotografia: filipe sousa | 18 setembro 2020

 























Hoje celebra-se o Dia Internacional do Fascínio das Plantas. A condizer, fascinado me confesso pelas plantas resilientes da Ponta de São Lourenço e palavras sábias de Teofrasto.

As partes de uma planta

«Depois de ter enumerado as suas partes, tentaremos falar acerca de cada uma. As primeiras, principais e comuns à maioria, são a raiz, caule, ramo e galho, que são como que os membros em em que a planta pode dividir-se, tal como os animais. Cada uma é distinta daas outras, e delas todas se forma o conjunto. Raiz é a parte pela qual é levado o alimento; o caule, aquela par onde é conduzido. Chamo caule à parte simples que surge acima da terra, que é comum igualmente às plantas anuais e perenes, e que nas árvores se chama tronco; ramos, às partes que se bifurcam a partir dele, e a que alguns chamam franças; e galhos aos rebentos que delas se originam, tais como têm sobretudo as plantas anuais, e que são especialmente próprios das árvores.
O caule, como se disse, é a parte mais comum. Mas, a este mesmo, nem todas o têm, como certas herbáceas. Algumas não têm sempre, mas só anualmente, como aquelas cujas raízes duram mais. De um modo geral, a planta é coisa múltipla, variada e difícil de definir no seu conjunto. Prova disso é que não podemos tomar nenhuma característica em comum, que exista em todas, como a boca e o ventre, nos animais.
Por analogia, umas partes são assim, outras de outro modo. Com efeito, nem todas as plantas têm raiz, ou caule, ramos, galhos, folhas, flores ou frutos, nem casca, medula, nervos ou veias, como o cogumelo e a túbera. Mas nestas e noutras assim a sua natureza existe. Todavia, é sobretudo nas árvores que, como dissemos, se encontram estas partes, e a elas que pertencem especificamente. É justo, pois que sejam o ponto de referência para as restantes plantas.»

Teofrasto (séc. IV-III a.C.), História das Plantas, I, 9-11 (trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Antologia da Cultura Grega (1959), 8ª ed. Edições Asa, Porto, 2003, p. 464.