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fotografia: filipe sousa | 18 novembro 2021 |
Aqui de magnos cachos nos seduz
A promessa da vide, e o sol que luz
Apraz de sombras o passeio onde imos
Sem fim nem astro, sem dever nem cruz.
Seja dos maus atalhos das florestas,
Seja onde por janelas ou por frestas
Olhamos para o mundo pouco a pouco,
E o mundo é um ermo onde se movem festas.
Ah, bebe! A vida não é boa ou má.
O que lhe demos é o que ela dá.
Tudo é restituído ao que não foi.
E ninguém sabe o que é ou haverá.
Cansa ter tédios, sem que sejam mágoas.
Da rumorosa solidão das águas
Sobe na noite um som que 'stá connosco.
Ao despertar bebe vinho. Leio e apago-as.
Ah, vinde aqui onde há o vosso amigo,
Este velho Khayyam só inimigo
Não dos que buscam mas de eles buscarem
Khayyam em cujo lar não há postigo.
O esforço dura quanto dura a fé.
Mas quanto a quem não é dura o quê?
Ah, bebe, bebe, bebe, até 'squeceres
O como, donde, aonde, onde e porquê!
Trazes as rosas que te não pedi.
E mais que às rosas, vens trazer-me a ti.
Mas estou cheio só do entendimento
E tudo quanto tragas já perdi.
13-5-1931
Fernando Pessoa, Canções de beber - Ruba'iyat na Obra de Fernando Pessoa, edição e prefácio Maria Aliete Galhoz, Assírio e Alvim, Lisboa, 2003, pp. 58-59.