Marseille / Marselha

«Em Marselha, ficámos chocados por ver pessoas normais fazerem uma careta e declararem-se prontas a liquidar um árabe. Os Marselheses são gente franca que aprecia os prazeres simples da vida. São, felizmente, imunes à arte. A sua cidade é a única metrópole que não exibe a grandeza do seu passado e que não nos oprime com o peso dos seus monumentos. Marselha é igualmente um mil-folhas étnico cujas portas se abriram a todos os géneros de viajantes e imigrantes: anarquistas espanhóis, gregos de Esmirna, marinheiros arménios e africanos - la marine au charbon. Reproduções do retrato de Napoleão pintado por Ingres enfeitam as paredes, como propaganda política, dos cafés corsos do bairro do Panier. Toda a gente sabe que Marselha é uma cidade de bandidos e, outrora, o facto era anunciado com jovialidade. Esta cidade de individualistas está a virar as costas ao mar e a sua nova prosperidade fá-la detestar os estrangeiros, o que a torna mesquinha e desconfiada.»

Bruce Chatwin, «A tristíssima história de Salah Bougrine» (1974) in O que faço eu aqui (What am I doing here, 1989), 2ª ed., trad. José Luís Luna, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, pp. 274-275. 


fotografia: clara lourenço | novembro 2017

Genova / Génova

«Estamos no primeiro dia de Janeiro do ano de mil seiscentos e sessenta e sete.
O ano chamado "da Besta" terminou, mas o sol ergue-se sobre a minha cidade de Génova. No seio dela nasci há mil anos, há quarenta anos, e de novo neste dia.
Desde o alvorecer que estou alegre, e tenho vontade de olhar o sol de lhe falar como Francisco de Assis. Deveríamos alegrar-nos sempre que ele começa a iluminar-nos, mas hoje os homens têm vergonha de falar com o sol.
Assim, ele não se apagou, nem os outros corpos celestes. Se não os vi a noite passada, foi porque o céu estava encoberto. Amanhã, ou daqui por duas noites, hei-de vê-los, e não precisarei de contá-los. Eles estão lá, o céu não se apagou, as cidades não estão destruídas, nem Génova, nem Londres, nem Moscovo, nem Nápoles. Deveremos viver ainda rente ao chão com as nossas misérias de homens. Com a peste e as vertigens, com a guerra e os naufrágios, com os nossos amores, com as nossa feridas. Nenhum cataclismo divino, nenhum dilúvio virá afogar medos e traições.
É possível que o Céu não nos tenha prometido nada. Nem o melhor nem o pior. É possível que o Céu viva apenas ao ritmo das nossas próprias promessas.» 

Amin Maalouf, O Périplo de Baldassare (Le Périple de Baldassare, 2000), trad. António Pescada, 3ª ed., Difel, Algés, 2001, p. 401.


fotografia: filipe sousa | julho 2004


Venezia / Veneza, Piazzetta, Basilica di San Marco

«Mais, não são só as frases que desenham aos nossos olhos as formas da alma antiga. Entre as frases - e estou a pensar em livros muito antigos que foram inicialmente recitados -, no intervalo que as separa permanece ainda hoje, como num hipogeu inviolado, enchendo os interstícios, um silêncio muitas vezes secular. Várias vezes no Evangelho de São Lucas, ao encontrar os dois pontos que o interrompem antes de cada uma das partes quase em forma de cânticos de que está semeado, ouvi o silêncio do crente, que acabava de parar a leitura em voz alta a fim de entoar os versículos seguintes como um salmo que lhe fizesse lembrar os salmos mais antigos da Bíblia. Este silêncio enchia ainda a pausa da frase que, ao ter-se cindido para o englobar, guardara a forma dele; e mais de uma vez, enquanto eu lia, ele me trouxe o perfume de uma rosa que a brisa entrando pela janela aberta espalhara pela sala de tecto alto onde estava reunida a Assembleia e que se evaporara desde há quase dois mil anos. A Divina Comédia, as peças de Shakespeare, dão também a impressão de contemplarem, inserido na hora actual, um pouco do passado; esta impressão tão exaltante que faz com que certos "Dias de Leitura" se assemelhem a certos dias de deambulação por Veneza, pela Piazetta por exemplo, quando se tem diante de nós, na sua cor semi-irreal de coisas situadas a poucos passos e a muitos séculos, as duas colunas de granito cinzento e rosa que têm nos capitéis, uma o leão de São Marcos, a outra Santo Teodoro esmagando o crocodilo; estas duas belas e esbeltas estrangeiras vieram outrora do Oriente trazidas pelo mar que as seus pés se quebra; sem compreenderem as conversas tidas à sua volta, continuam a alongar os seus dias do século XII na multidão de hoje, naquela praça pública onde brilha ainda distraidamente, ali tão perto, o seu sorriso distante.


fotografia: fiipe sousa | julho 2003


























(...)
E é por esta razão que é conveniente ler os escritores clássicos na íntegra, em vez de nos contentarmos com excertos escolhidos. As páginas ilustres dos escritores são muitas vezes aquelas em que esta contextura íntima da sua linguagem está dissimulada pela beleza, com um carácter quase universal, do excerto. Não creio que a essência particular de Gluck se faça sentir numa determinada ária sublime do mesmo modo que numa determinada cadência dos recitativos onde a harmonia é como que o próprio som da voz do seu génio quando recai sobre uma entoação involuntária onde está marcada toda a sua gravidade ingénua e a sua distinção, sempre que a ouvimos por assim dizer tomar fôlego. Quem já viu fotografias da Praça de São Marcos em Veneza pode julgar (e só estou a falar do exterior do monumento) que tem uma ideia dessa igreja de cúpulas, quando é apenas ao aproximarmo-nos, quase a podermos tocá-las com a mão, do pano matizado das colunas sorridentes, é apenas ao vermos o poder estranho e grave que enrola as folhas onde se empoleiram os pássaros nesses capitéis que só podemos distinguir de perto, é apenas ao termos sobre a própria praça a impressão desse monumento baixo, a todo o comprimento da fachada, com os mastros floridos e a sua decoração festiva, o seu ar de "palácio de exposição", que sentimos brotar, nesses traços significativos mas acessórios e que nenhuma fotografia retém, a sua verdadeira e complexa individualidade.»

Marcel Proust, O Prazer da Leitura (Journées de Lecture, 1906), trad. Magda Bigotte de Figueiredo, Editorial Teorema, Lisboa, pp. 61-62, 77-78.

Portinho da Arrábida

«Há em Ítaca um porto dito de Fórcis, o velho do mar:
nele dois promontórios se projectam em saliências rochosas,
íngremes do lado do mar, mas inclinados para o porto,
impedindo as ondas levantadas pelos ventos terríveis
de fora; lá dentro, sem amarras, estão fundeadas
as naus bem construídas, quando atingem o ancoradouro.
No cabeço deste porto está uma oliveira de esguias folhas,
e perto dela há uma gruta aprazível e sombria,
consagrada às ninfas que têm por nome Náiades.
Lá dentro estão taças e ânforas de pedra;
as abelhas também lá guardam o seu mel.
Há compridos teares de pedra, onde as ninfas
tecem tramas de púrpura, maravilha de se ver!
No interior existem nascentes de água inesgotável
e duas portas: uma virada a norte, por onde entram
os homens; e outra a sul, que os homens evitam:
pois essa é caminho dos deuses imortais.»

Homero, OdisseiaCanto XIII 96-112, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, pp. 215-216.


fotografia: filipe sousa | 27 março 2016

Ponta Delgada, Rua João de Melo Abreu 42

«Os golfinhos, as baleias e todos os cetáceos deste género não têm guelras, mas um espiráculo, devido a possuírem um pulmão. Quando recebem a água do mar pela boca, expelem-na pelo espiráculo. Têm, com efeito, necessidade de absorver líquido, porque é por ele que recebem alimento. Ora, uma vez que  o absorveram, precisam de o expelir. As guelras são úteis aos animais que não respiram. A razão do facto ficou exposta no estudo Sobre a Respiração. Com efeito, é impossível a um mesmo animal respirar e ter guelras. Mas é para expulsar a água que têm o espiráculo, o qual se encontra antes do cérebro, aliás separá-lo-ia da coluna vertebral.
O motivo de estes animais possuírem um pulmão e respirarem é que os animais grandes precisam de mais calor, para se moverem. Por isso é que têm o pulmão cheio de calor sanguíneo. São eles em certa medida animais terrestres e marinhos, porquanto absorvem ar como os terrestres, são ápodos, e extraem a sua alimentação da água, como os aquáticos.»

Aristóteles, As Partes dos Animais, 697a  in Hélade - Antologia da Cultura Grega, org. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, 8ª ed., Edições Asa, Porto, 2003, p. 459.  

http://walktalkazores.org/Cartaz/Hazul?Edicao=2019

fotografia: filipe sousa | 26 julho 2016

Berlin / Berlim, Muhlenstrasse (Muro de Berlim, East Side Gallery)

BERLIM

Há uma ruptura
uma fenda no escuro
do silêncio:

ouve-se o murmúrio
da urina
dos soldados contra o muro.

Eugénio de Andrade, «Escrita da Terra» (1970-1978), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed. Limiar, Porto, s.d., p. 138

fotografia: clara lourenço | 18 maio 2017

Sobral da Adiça

«Faustino diz:
-Pode ser que chova.
Todos levantamos a cara e olhamos uma nuvem negra e pesada que passa por cima das nossas cabeças. E pensamos: «Pode ser que sim.»
Não dizemos o que pensamos. Há bastante tempo que se nos acabou a vontade de falar. Acabou-se com o calor. Uma pessoa conversaria com muito gosto noutro sítio, mas aqui dá muito trabalho. Uma pessoa põe-se a conversar aqui e as palavras aquecem na boca com o calor de lá de fora, e secam-se-nos na língua até nos deixarem sem fôlego.
Aqui as coisas são assim. Por isso a ninguém lhe dá para conversar.
Cai uma gota de água, grande, gorda, fazendo um buraco na terra e deixando um empaste como de uma cuspidela. Cai sozinha. Nós esperamos que continuem a cair mais. Não chove. Agora, se olharmos para o céu, vê-se a nuvem aguaceira correndo para bem longe, cheia de pressa. O vento que vem da aldeia arrima-se-lhe empurrando-a contra as sombras azuis dos cerros. E a gota caída por engano é comida pela terra, que a faz desaparecer na sua sede.
Quem diabo terá feito esta planície tão grande? Para que é que serve, hã?»

Juan Rulfo, "Deram-nos a terra" in A Planície em Chamas (El llano em llamas, 1953), trad. Ana Santos, Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, 2003, p. 12.

fotografia: filipe sousa | 23 abril 2017

Roma, Piazza del Colosseo

«A notícia das incursões sármatas chegou a Roma durante a celebração do triunfo dácio de Trajano. Essas festas, várias vezes adiadas, duravam há oito dias. Tinham levado cerca de um ano para mandar vir da África e da Ásia os animais selvagens que se projectava abater em massa na arena; o massacre de doze mil feras, a decapitação metódica de dez mil gladiadores faziam de Roma um lugar de orgia da morte. (...)
(...) aprendi a suportar os Jogos em que não vira, até então, senão feroz esbanjamento. A minha opinião não mudara: detestava aqueles massacres em que a fera não tem uma probabilidade; no entanto, ia percebendo pouco a pouco o seu valor ritual, os seus efeitos de trágica purificação sobre a multidão inculta; queria que o esplendor das festas igualasse o de Trajano, com mais arte e mais ordem todavia. Impus a mim mesmo apreciar  a rigorosa esgrima dos gladiadores, com a condição, porém, de que ninguém fosse forçado a exercer aquela profissão contra sua vontade. Aprendi, do alto da tribuna do Circo, a parlamentar com a multidão através da voz dos arautos, a não lhe impor silêncio senão com uma deferência que ela me retribuía a centuplicar, a não lhe conceder coisa alguma que ela não tivesse o direito de esperar, a não recusar nada sem explicar o motivo da minha recusa. Não levava, como tu, os meus livros para a tribuna imperial: aparentar desdém pelas alegrias dos outros é insultá-los. Se o espectáculo me aborrecia, o esforço de suportar era para mim um exercício mais valioso que a leitura de Epicteto.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, pp. 60, 93.

fotografia: filipe sousa | 9 julho 2009



København / Copenhaga, Randersgade 45

OS DIÁLOGOS FALHADOS
(...)
«E as bicicletas? O que são para ti as bicicletas, rapaz? As bicicletas que de cabeleira ao vento correm sobre nós de todos os lados tão prontas a uma agressão como a um beijo, as bicicletas loucas que nos sobem pelas costas e ficam horas e horas a rodar no alto da cabeça, as bicicletas que às vezes são usadas como lunetas pelos pobres de espírito? Interessava-me saber o que pensas das bicicletas. Lembras-te, com certeza, dos mendigos fardados que distribuem telegramas, que martirizam as pobres pequenas bicicletas... E nelas, pensas? Acaso te aproximaste já de alguma com verdadeira intenção de a conhecer?»
(...)

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Poemas com Endereço, 1962), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 186.


fotografia: filipe sousa | agosto 2001

Santo Amador

XII

Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

Eugénio de Andrade, «As Mãos e os Frutos» (1945-1948), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed. Limiar, Porto, s.d., p. 23.

fotografia: filipe sousa | 24 abril 2016

Anemzi

«Uma história é como uma casa, uma velha casa, com níveis, quartos, corredores, portas e janelas, sótãos, caves ou grutas, espaços inúteis.
As paredes são a memória dela. Arranhem um pouco uma pedra, apurem o ouvido e ouvirão muita coisa! O tempo junta o que traz o dia e o que dispersa a noite. Ele guarda e retém. A testemunha é a pedra. O estado da pedra. Cada pedra é uma página escrita, lida e riscada. Tudo se mantém nos grãos da terra. Uma história. Uma casa. Um livro. Um deserto. Uma errância. O arrependimento e o perdão. Sabiam que perdoar é esconder? Não tenho nem glória nem esplendor para me transportarem até aos céus. Esqueci as cinco orações. Pensava que a fonte de onde tirava as minhas histórias nunca se esgotava. Como o oceano. Como as nuvens que se seguem umas às outras se alteram mas que dão sempre chuva. Procuro o perdão. Quem ousaria conceder-me este esquecimento? Disseram-me que um poeta anónimo que se tornou santo das areias que envolvem e dissimulam poderia ajudar-me. Parti. Despojei-me de tudo e segui a caravana a pé. Abandonei tudo. Vesti-me de lã e tomei o caminho do Sul sem me voltar.»

Tahar Ben Jelloun, A Criança de Areia (L'enfant de sable, 1985), trad. Maria Teresa Brito, Editorial Estampa, Lisboa, 1989, pp. 193-194.


fotografia: filipe sousa | dezembro 1993

Barcelona, Carrer de l'Hospital 56

XADREZ
I

No seu grave recanto, os jogadores
Regem as lentas peças. O tabuleiro
Os demora até à alba em seu severo
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, sagaz dama, rei postreiro,
Oblíquo bispo e peões agressores.

Depois dos jogadores se terem ido,
Depois do tempo os ter consumido,
Decerto não terá cessado o rito.

No oriente incendiou-se esta guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

Jorge Luís Borges, O Fazedor (El Hacedor, 1960), trad. Miguel Tamen, 4ª ed., Difel, Lisboa, 2002, p. 65.


fotografia: filipe sousa | 26 junho 2017

Sevilla / Sevilha, Plaza de la Encarnación (Metropol Parasol)

SEVILLA

Sevilla para herir
Córdoba para morir.

Una ciudad que acecha
largos ritmos,
y los enrosca
como laberintos.
Como tallos de parra
encendidos.

!Sevilla para herir!

Bajo el arco del cielo,
sobre su llano limpio,

dispara la constante
saeta de su río.

!Córdoba para morir!

Y loca de horizonte 
mezcla en su vino,
lo amargo de Don Juan
y lo perfecto de Dionisio.

Sevilla para herir.
!Siempre Sevilla para herir!

Federico García Lorca, «Poema del cante jondo» (1930) in Poesía completa II, Edición y Prólogo de Miguel García Posada, DeBols!!o, Barcelona, 2004, p. 59.


fotografia: filipe sousa | 28 dezembro 2012



Algures entre Anemzi e Tagoudit

Após o almoço servido em casa do moqqadem (chefe da aldeia), regressámos a Tagoudit no mesmo jipe cujos travões deixavam muito a desejar. Numa curva, por um triz não chocámos com um camião de caixa aberta, uma das gloriosas Bedford que cumprem serviço em todo o Alto Atlas como camionetas de carreira.

Filipe Sousa, Alto Atlas Oriental: no coração de Marrocos (diário de viagem), 1993.


fotografia: filipe sousa | dezembro 1993

Portofino

«A cor da Terra é bela, uns alaranjados de efeitos concludentes dão gritos de saibro à Terra ressequida -, pinheiros pouco verdes mas retorcidos pelas formas mais ousadas vão a granel pela encosta abaixo - pequenas penínsulas sem grande prestígio roubam instantes visuais de ilhas indefinidas. (...)
Caminhos sinuosos abrem e fecham pedaços maiores de horizonte quando tudo parece aumentar um desejo de libertação contra as cadeias de um perfeito bilhete postal. Tudo se rodeia de uma atmosfera baça onde o azul forte do céu tem qualquer coisa de papagaio verde. (...)
A paisagem da Riviera italiana deduz-se uma estrada difícil e sempre marginal às posições aquáticas de transparências submarinas.»

Ruben A., Páginas (VI), (1970) , Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pp. 121-122. 

fotografia: filipe sousa | 10 agosto 2004
























Christiania

Reza a wikipédia que a tournée escandinava de 1968 marcou o início do trajecto da banda  de rock britânica Led ZeppelinAinda sob o nome de The New YardBirds, o quarteto  actuou em Setembro desse ano na Suécia e na Dinamarca, e nesta última em Gladsaxe (perto de Copenhaga), Brondby, Lolland e Roskilde. No ano seguinte, em Março, passam agora cinquenta anos, voltou ao reino da Dinamarca, já Led Zeppelin, para mais concertos: no dia 15, o grupo actuou duas vezes, no Teens Club Box, em Gladsaxe, e no Brondy Pop Club, em Copenhaga. No dia 16, nova dose dupla, agora na mesma sala, em Copenhaga, no Tivolis Koncertsal. E no dia 17, Robert Plant, Jimmy Page, John Paul Jones e John Bonham estavam de volta a Gladsaxe para mais uma actuação, de que existe este registo: https://vimeo.com/80275676. 
Existisse Christiania, cidade livre e independente dos arrabaldes de Copenhaga criada dois anos depois por hippies, anarquistas e demais sonhadores, e teria sido incluída, muito provavelmenteneste périplo, ...e aí a "energia" teria sido outra!

fotografia: filipe sousa | agosto 2001

Torino / Turim, Rio Pó

ARTE POÉTICA
Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
(...)

Jorge Luís Borges, Poemas Escolhidos (Antologia Personal, 1961), trad. Ruy Belo, 2ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985, p. 49.


fotografia: filipe sousa | 10 abril 2018

Mediterrâneo, Córsega

«Mediterrâneo pela primeira vez no dia 2 de Julho de 1950.
Imediatamente possuí-me de Mediterrâneo - entrei por ele dentro e senti apenas água tépida no acariciar da pele. Fiquei desconfiado à procura do foco alimentador daquele caldinho - o banho foi um caldinho, não chega a ser banho, é uma tina ao natural onde a temperatura da água nos torna bonecos de borracha - senti-me feito de borracha no espapaçar do meu bojo. Ao mesmo tempo cresciam dentro de mim saudades do Guincho, saudades de espuma, de virilidade marinha e de onda batida pelo vento. Por aqui não há brisas, há só brasas.»

Ruben A., Páginas (VI), (1970) , Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p. 26. 


fotografia: filipe sousa | outubro 2005

Berlin / Berlim, Pariser Platz, Brandenbourg Tor (Porta de Brande(m)burgo)

«Bernard disse ao taxista que nos levasse para a Porta de Brandeburgo, mas isso revelou-se um erro, e então comecei a perceber o que a vizinha de Gunter quisera dizer. Havia demasiada gente e demasiado trânsito. As estradas habitualmente movimentadas suportavam uma carga de Warburgs e Trabants a vomitar fumo, na sua primeira noite de visitas turísticas. Os passeios também estavam apinhados. Agora todos eram turistas, berlinenses dos dois lados, assim como estrangeiros. Bandos de adolescentes de Berlim Ocidental, com latas de cerveja e garrafas de Sekt, passavam pelo nosso carro encalhado, entoando canções futebolísticas. (...)
Desistimos do táxi e fomos a pé. Foram vinte minutos até ao Monumento à Vitória, e a partir daí desenrolou-se à nossa frente o largo acesso da 17 de Junho à Porta. Alguém colocara um bocado de cartão sobre o letreiro da rua e pintara «9 de Novembro». Centenas de pessoas seguiam na mesma direcção. A cerca de 400 m de distância, a porta de Brandeburgo erguia-se, iluminada, parecendo demasiado pequena, demasiado atarracada, para a sua importância global. (...)
Quando chegámos à barreira, Bernard apontou para um agente da polícia de Berlim Ocidental que conversava com um oficial do exército da Alemanha Oriental.
-Estão a discutir como controlar a multidão. Já é meio caminho para a unificação.»

Ian McEwan, Cães Pretos (Black Dogs, 1992), trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 3ª ed., Gradiva, Lisboa, 2005, pp. 86, 92.


fotografia: clara lourenço | 8 janeiro 2017

Lago de Alqueva, Luz

«-E se uma estrela-cadente viesse agora marrar connosco?
-Pedíamos o livro das reclamações cósmicas, aos pés do trono de Cassiopeia, a vaidosona.»

Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, p. 113.


fotografia: filipe sousa | 7 agosto 2016

Algures entre Telheiro e Barrada (Olival da Pega)

«Quanto à oliveira, nada mais têm a dizer, senão que é o testemunho da luta da deusa pela posse da região. Contam ainda que esta oliveira foi queimada, quando os Medos incendiaram a cidade dos Atenienses, mas, no mesmo dia em que ardeu, produziu um rebento de dois côvados.»

Pausânias, Descrição da Grécia, I, 27, 2 in Hélade - Antologia da Cultura Grega, org. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, 8ª ed., Edições Asa, Porto, 2003, p. 508.

fotografia; filipe sousa | maio 2013

Estação Ferroviária de Marvão-Beirã

Gacela III
Del amor desesperado

La noche no quiere venir
para que tú no vengas,
ni yo pueda ir.

Pero yo iré,
aunque un sol de alacranes me coma la sien.

Pero tú vendrás
con ta lengua quemada por la lluvia de sal.

El día no quiere venir
para que tú no vengas,
ni yo pueda ir.

Pero yo iré
entregando a los sapos mi mordido clavel.

Pero tú vendrás
por las turbias cloacas de la oscuridad.

Ni la noche ni el día quieren venir
para que por ti muera
y tú mueras por mí. 

Federico García Lorca, «Dívan del Tamarit» (1930) in Poesía completa III, Edición y Prólogo de Miguel García Posada, DeBols!!o, Barcelona, 2004, p. 157


fotografia: filipe sousa | 2 novembro 2013


Helsingor / Elsinore, Castelo de Kronborg

«Momentos depois, a escuna, com a mezena, a brigantina, a gávea e o joanete, tudo aparelhado, fez-se à vela pelo estreito fora. Uma hora mais tarde, a capital da Dinamarca parecia mergulhar nas águas distantes, e a Valkyrie dobrava a costa de Elsinore. Com o nervosismo que me dominava, esperava ver a sombra de Hamlet vagueando pelo terraço lendário.
«Ah, louco sublime!», pensava eu. «Só tu nos aprovarias, sem dúvida! Talvez nos seguisses até ao centro da Terra à procura duma solução para a tua eterna dúvida!»
Mas nada nos apareceu sobre as antigas muralhas. Aliás, o castelo é muito mais recente do que o do heróico príncipe da Dinamarca. Actualmente, serve de habitação sumptuosa ao porteiro do estreito de Sund, local por onde passam por ano quinze mil navios de todas as nações.
O castelo de Krongborg em breve desapareceu na bruma, bem como a torre de Helsingborn, que se ergue sobre a costa sueca, e a escuna inclinou-se ligeiramente, impelida pelas brisas do Categate.»

Júlio Verne, Viagem ao Centro da Terra (Voyage au Centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, p. 51.


fotografia: filipe sousa | agosto 2001



























Lugar: Elsinore, a Corte e lugares envolventes
(...)
«Hamlet, Príncipe da Dinamarca - Ide com ele amigos. Haverá uma representação amanhã. (Ao 1º actor) Ouvi o que vos digo, meu velho amigo. Podeis representar O Assassínio de Gonzaga?
1º Actor - Sim, senhor.
Hamlet - Muito bem. (A todos os actores) Segui aquele senhor, sem vos meterdes com ele. (saem Polónio e os actores)
(Para Rosencrantz e Guildenstern) Meus caros amigos, deixo-vos até logo à noite. Sede benvindos a Elsinore. (...)
Hamlet - À obra, engenho! Hum - ouvi dizer que criaturas culpadas, no teatro sentadas, foram pelo artifício de uma cena tão percutidas na alma que aí mesmo proclamaram alto os seus malefícios. Que o assassínio, embora sem língua, fala com bem miraculoso órgão. Aos actores direi que encenem algo como a morte de meu pai perante meu tio. Vou rondar-lhe a expressão, tenteá-lo até ao nervo. Se o vir estremecer, sei o que tenho a fazer. O espírito que vi pode bem ser demónio, e o demónio é capaz de assumir forma melíflua, sim, e talvez, dada a minha fraqueza e melancolia, sendo potente no uso de tais humores, me iluda para me danar. Hei-de ter razões mais materiais que essa. A peça é coisa com que vou enlaçar a consciência do Rei.»

William Shakespeare, Hamlet (The Tragedie of Hamlet, Prince of Denmarke, 1599-1601), edição bilingue, trad. António Feijó, Edições Cotovia, Lisboa, 2001, pp. 103, 105, 107.

Barcelona, Carrer de la Princesa 7

CARNAVAL
d


Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,

Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que se passa, ondeando, em torno meu,
Passa (...)

Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
(...)

Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, (...) menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou.

Álvaro de Campos, «Carnaval» (1913-1914), Poesia, Obras de Fernando Pessoa, ed. Teresa Rita Lopes, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 73-74.

www.arlequimask.com


fotografia: filipe sousa | 7 abril 2014




Algures entre Povoação e Faial da Terra (vista sobre Fajã do Calhau)

«Passada a povoação, acharam-se num campo ermo estendido a perder de vista pelas falésias da costa. Era um verdadeiro deserto suspenso sobre o mar, um descampado à flor dos altos rochedos que rompiam lá dos abismos das águas e que, a bem dizer, representavam os ossos da terra, aquilo que aguentava a terra para não se desmanchar.
O carro chegou a esse deserto ou a esse descampado e, acto contínuo, apearam-se os viajantes - o homem de quarenta anos, se tanto, e a companheira (a). Dizia esta olhando em redor:
«Que estupendo, João. Nunca imaginei que houvesse um sítio tão espantoso. É livre, é bom.»
(a) Guida Sampaio, vinte e três anos, licenciada, salvo erro, em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa.

José Cardoso Pires, O Anjo Ancorado (1958), 5ª ed., Moraes Editores, Lisboa, 1977, pp. 15-16.


fotografia: filipe sousa | 24 julho 2016

Roma, Capitólio, Piazza del Campidoglio

«(...) Chegámos a Roma há seis semanas, numa quadra em que a cidade ainda está vazia, ardente e como que amaldiçoada por causa das febres. (...)
Há aqui jardins, alamedas inesquecíveis, escadórios concebidos por Miguel Ângelo à semelhança de águas caindo, amplas na sua queda, em que cada degrau nasce de outro degrau, como a onda nasce da onda. (...)
Moro ainda na cidade, perto do Capitólio, a dois passos da mais bela estátua equestre que a arte romana nos legou: a de Marco Aurélio. Mas, dentro de algumas semanas, irei viver numa casa simples e tranquila, velha habitação perdida no fundo de um grande parque fechado aos ruídos e às provocações da cidade.» (...)
Roma, 29 de Outubro de 1903. 

Rainer-Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta (Briefe an einen jungen Dichter, 1929), trad. Fernanda de Castro, Contexto, Lisboa, 1986, pp. 27-28.


fotografia: filipe sousa | 27 junho 2015