Venezia / Veneza, Piazzetta, Basilica di San Marco

«Mais, não são só as frases que desenham aos nossos olhos as formas da alma antiga. Entre as frases - e estou a pensar em livros muito antigos que foram inicialmente recitados -, no intervalo que as separa permanece ainda hoje, como num hipogeu inviolado, enchendo os interstícios, um silêncio muitas vezes secular. Várias vezes no Evangelho de São Lucas, ao encontrar os dois pontos que o interrompem antes de cada uma das partes quase em forma de cânticos de que está semeado, ouvi o silêncio do crente, que acabava de parar a leitura em voz alta a fim de entoar os versículos seguintes como um salmo que lhe fizesse lembrar os salmos mais antigos da Bíblia. Este silêncio enchia ainda a pausa da frase que, ao ter-se cindido para o englobar, guardara a forma dele; e mais de uma vez, enquanto eu lia, ele me trouxe o perfume de uma rosa que a brisa entrando pela janela aberta espalhara pela sala de tecto alto onde estava reunida a Assembleia e que se evaporara desde há quase dois mil anos. A Divina Comédia, as peças de Shakespeare, dão também a impressão de contemplarem, inserido na hora actual, um pouco do passado; esta impressão tão exaltante que faz com que certos "Dias de Leitura" se assemelhem a certos dias de deambulação por Veneza, pela Piazetta por exemplo, quando se tem diante de nós, na sua cor semi-irreal de coisas situadas a poucos passos e a muitos séculos, as duas colunas de granito cinzento e rosa que têm nos capitéis, uma o leão de São Marcos, a outra Santo Teodoro esmagando o crocodilo; estas duas belas e esbeltas estrangeiras vieram outrora do Oriente trazidas pelo mar que as seus pés se quebra; sem compreenderem as conversas tidas à sua volta, continuam a alongar os seus dias do século XII na multidão de hoje, naquela praça pública onde brilha ainda distraidamente, ali tão perto, o seu sorriso distante.


fotografia: fiipe sousa | julho 2003


























(...)
E é por esta razão que é conveniente ler os escritores clássicos na íntegra, em vez de nos contentarmos com excertos escolhidos. As páginas ilustres dos escritores são muitas vezes aquelas em que esta contextura íntima da sua linguagem está dissimulada pela beleza, com um carácter quase universal, do excerto. Não creio que a essência particular de Gluck se faça sentir numa determinada ária sublime do mesmo modo que numa determinada cadência dos recitativos onde a harmonia é como que o próprio som da voz do seu génio quando recai sobre uma entoação involuntária onde está marcada toda a sua gravidade ingénua e a sua distinção, sempre que a ouvimos por assim dizer tomar fôlego. Quem já viu fotografias da Praça de São Marcos em Veneza pode julgar (e só estou a falar do exterior do monumento) que tem uma ideia dessa igreja de cúpulas, quando é apenas ao aproximarmo-nos, quase a podermos tocá-las com a mão, do pano matizado das colunas sorridentes, é apenas ao vermos o poder estranho e grave que enrola as folhas onde se empoleiram os pássaros nesses capitéis que só podemos distinguir de perto, é apenas ao termos sobre a própria praça a impressão desse monumento baixo, a todo o comprimento da fachada, com os mastros floridos e a sua decoração festiva, o seu ar de "palácio de exposição", que sentimos brotar, nesses traços significativos mas acessórios e que nenhuma fotografia retém, a sua verdadeira e complexa individualidade.»

Marcel Proust, O Prazer da Leitura (Journées de Lecture, 1906), trad. Magda Bigotte de Figueiredo, Editorial Teorema, Lisboa, pp. 61-62, 77-78.

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