Lisboa, Baixa Pombalina

Tinha quatro anos, prestes a fazer cinco, e os olhos abertos, e não era um sonho, e, por isso, os brinquedos empilhados a estremecerem em cima da arca por largos segundos até perderem o equilíbrio e caírem no chão. Lembro-me nitidamente do BMW verde, de plástico, entre os destroços. Por milagre, a baixela que minha mãe guardava numa cristaleira da sala de jantar sobrevivera incólume à ira dos deuses. O mesmo não se pode dizer das paredes do prédio, que ganharam fissuras de repente. Veio a família, em pijama, para a rua, de castiçal na mão, dirigir preces a quem de direito, espantar o medo ou reparti-lo com os vizinhos, não sei bem. A madrugada estava fria e prometia solidariedades nunca vistas no meu bairro de Lisboa.

Faz agora cinquenta anos o abalo sísmico que sacudiu Portugal, de norte a sul, no dia 28 de Fevereiro de 1969, de que guardo, provavelmente, a mais longínqua das memórias. Bastou para infundir medo e colocar-nos à prova, pouco mais do que isso, nada comparável à catástrofe de 1755, a julgar pelos testemunhos dos que lhe sobreviveram. Seja como for, não estamos livres de voltar a acontecer, um dia destes, afirmam os que estudam tais fenómenos. 


fotografia: filipe sousa | 29 julho 2015





























«Pouco depois das nove e meia da manhã o barómetro marca 27 polegadas e sete linhas; o termómetro de Réaumur assinala 14 graus acima do gelo. O vento chega fraco de nordeste.
Ouviu-se um ruído cavo e grave - «rugido tão medonho como o de hum espantoso Trovão» - e em simultâneo a terra tremeu. De imediato sentiu-se uma vibração apenas suficiente para fazer dançar as folhas de papel em cima de uma mesa, mas de contínuo aumentou «com tão violento, e estranho moto (=movimento), que logo indicou não ser puramente tremor». Objectos maiores caíram das prateleiras, molduras e crucifixos pregados às paredes baloiçavam como se fossem barbatanas de um peixe fora de água - «the frames flapped against the wall», descreveu uma testemunha inglesa. Os próprios edifícios começaram já a balançar para trás e para diante. A terra vibrava como se fosse atravessada por uma onda, disseram depois várias testemunhas - e muito correctamente, uma vez que o sismo é de facto uma onda de energia. (...)
O comerciante inglês que se encontrava à escrivaninha sentiu imediatamente o choque. Os móveis tremiam e objectos diversos caíram logo nos primeiros segundos do sismo. Conseguiu chegar-se à janela e espreitar o que acontecia na rua. Segundo o seu testemunho - publicado em Londres sob o formato de folheto, e intitulado Uma descrição particular do recente e horrendo terramoto de Lisboa - foi então que viu cair parte do edifício em frente à sua casa. As paredes ruíram por cima de duas pessoas que passavam e que morreram logo ali. «that was bad enough», escreve o comerciante, mas o pior estava para vir. «Não passava um minuto», garante, «e vi a minha Mulher e Filha (que tinham corrido Porta fora ao primeiro Choque) serem enterradas vivas pela derrocada da parte restante do mesmo prédio» do outro lado da rua.
Aparentemente os edifícios começaram a ruir a partir do segundo minuto do sismo. (...)
O terramoto durou mais de sete minutos, com duas curtas paragens. Esta é uma estimativa de compromisso: existem testemunhos que dão como duração do terramoto dez ou quinze minutos; a maioria aponta para abaixo de dez minutos. Há quem garanta apenas uma interrupção ou até quem não se refira a nenhuma; seja como for, as paragens devem ter sido muito breves, porque todos se referem a este sismo como tendo sido apenas um (ocorreram, contudo, réplicas durante o resto do dia e os abalos sísmicos passaram a fazer parte do quotidiano nos meses e até anos seguintes).(...)
Muitos acreditavam, certamente, que era chegado o fim do mundo (...)»

Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto - Ensaio sobre 1755, 2ª ed., Tinta-da-China. Lisboa, 2005, pp. 74-77.    

Paris, Île de la Cité, Pont au Double

«Clique, claque - clique, claque - clique, claque - com que então isto é que é Paris! exclamei eu (continuando com o mesmo mau humor) - afinal Paris é isto! - hum! - Paris! exclamei, repetindo a palavra pela terceira vez. 
- A primeira, a melhor, a mais luminosa -
- As ruas todavia estão nojentas;
Mas, imagino, há-de parecer melhor do que cheira - clique, claque - clique, claque - Mas que algazarra fizestes! - como se alguém estivesse interessado em saber Que um homem de rosto pálido, e vestido de preto, tivera a honra de ser conduzido a Paris, às nove da noite, por um postilhão de justilho amarelo forrado de calamanco encarnado - clique, claque, - clique, claque - Maldito chicote -
-Mas assim é o espírito desta nação; por isso continua, continua - clique, claque.
Ah! - e nem sequer cedem as paredes! (1) - mas se até na própria ESCOLA da URBANIDADE as paredes estão todas cheias de mer - como haveríeis vós de proceder de outro modo?
E dizei-me cá, quando é que acendem os candeeiros? O quê? - nos meses de Verão nunca os acendem! - Oh! é a época das saladas - saladas e sopas, encore -
-Isto é demais, p'los meus pecados.
Ora eu não suporto esta barbaridade; como pode este cocheiro velhaco lançar tantos palavrões àquele cavalo magricela? não vedes por acaso, amigo, que as ruas são vilmente estreitas, que não há espaço na cidade inteira de Paris para dar a curva nem com um carrinho de mão? Na mais grandiosa das cidades do mundo, não teria ficado nada mal terem-nas feito um bocado mais largas; ou melhor, terem deixado ao menos o suficiente  em cada uma para que um homem soubesse  (mesmo que fosse apenas para sua satisfação) se estava a andar pelo lado direito ou pelo lado esquerdo da rua.
Uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-nove-dez.- Dez casas de pasto! e duas vezes mais barbeiros! e tudo isso só em três minutos de carruagem! ter-se-ia julgado que todos os cozinheiros do mundo, em feliz concerto com os barbeiros, haviam deliberado em conjunto - Vamos, vamos todos viver para Paris: os franceses gostam de comer bem - são todos gourmands - e nós haveremos de chegar bem alto; se o seu deus é a barriga - os seus cozinheiros serão fidalgos: e na medida em que a cabeleira faz o homem, e o cabeleireiro a cabeleira - ergo, teriam dito os barbeiros, ainda mais alto chegaremos nós - estaremos acima de todos vós - seremos no mínimo Capitouls (2) - pardi! (3) teremos todos direito a usar espada-
-E, ter-se-ia jurado (isto é, à luz do candeeiro, - mas disso não podemos nós ficar à espera), assim continuaram a fazer até hoje.»
(1) Como as ruas estavam muitas vezes sujas e enlameadas, devido às águas que corriam pelo esgoto central, por cortesia deixavam-se os peões passar junto à parede; em Paris, no entanto, até as paredes estavam sujas.
(2) Magistrado superior de Toulouse, etc. etc. etc. (NOTA DO AUTOR).
(3) Por Deus!

Laurence Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, 1759 - 1767), trad. e not. Manuel Portela, Edições Antígona, Lisboa,1998, parte segunda, vol. VII, cap. XVII, pp. 203-205.


fotografia: clara lourenço | 29 fevereiro 2012

Moura, Rua 5 de Outubro 15 A

«Todas as construções eram bonitas de se ver. Fosse para homens, para burros ou para servir de armazéns, todas tinham o ritmo de curvas desejado que parecia surgir de si próprio quando se desenhava as abóbadas, mas que linhas direitas e tectos planos quase nunca reproduzem. E esta é a segunda particularidade das casas em tijolos de terra com cobertura em abóbadas. À parte de serem pouco dispendiosas, são bonitas. Como o método de construção impõe as formas e o material impõe as proporções só podem ser bonitas; cada linha respeita a distribuição dos esforços e o edifício ganha as formas naturais pretendidas. Dentro dos limites da resistência do material - a terra - e das leis da estática, o arquitecto encontra-se, de súbito, livre para modular o espaço com a sua construção, para inventar novos volumes e para devolver a esse espaço a ordem e o significado à escala humana, de tal forma que a sua casa já não terá necessidade de decorações adicionais. Os próprios elementos estruturais proporcionam um interesse visual infinito. A abóbada, a cúpula, as trompas e os pendentes, os arcos e as paredes proporcionam ao arquitecto um campo ilimitado de emaranhados racionais de linhas curvas vindas de todas as direcções, com passagens harmoniosas de uma para outra.» 

Hassan Fathy, Arquitectura para os Pobres - uma experiência no Egipto rural (Arquitecture for the Poor, an experiment in rural Egypt, 1969), trad. Joana Pedroso Correia, Argumentum/Dinalivro, Lisboa, 2009, p. 25.


fotografia: clara lourenço | 30 abril 2016

Vaticano, Piazza San Pietro

«No Estado do Vaticano vigora a lei de que nenhum criminoso pode ser executado sem antes receber a absolvição. Assim que Piachi soube da sua sentença, recusou obstinadamente a absolvição. Depois de terem recorrido a todos os meios de que a religião dispõe para mostrar a Piachi a ignomínia do acto que praticara, levaram-no para a forca na esperança de que, quando colocado diante da morte que o aguardava, o condenado finalmente se arrependesse. Um padre descreve-lhe com os pulmões da última trombeta todos os horrores do inferno onde a sua alma pecadora se preparava para mergulhar; um outro, com o corpo de Deus, o sagrado sacramento, na mão, glorificou a morada da paz eterna. «Queres tu fruir do benefício da redenção?», perguntaram-lhe ambos. «Queres receber a comunhão?» «Não», respondeu Piachi. «Porque não?» «Não quero ser salvo. Quero descer às vísceras mais profundas do Inferno. Quero voltar a encontrar Nicolo, porque ele não estará no Céu, e concluir aí a vingança que aqui apenas pude começar!» E assim subiu a escada e exigiu ao verdugo que fizesse o seu trabalho. A execução teve de ser interrompida e o infeliz, a quem a lei protegia, foi levado de volta para o cárcere. Fizeram-se mais três tentativas como esta nos três dias que se seguiram e todas com igual resultado.  Quando ao terceiro dia o obrigaram mais uma vez a descer as escadas do patíbulo, Piachi ergueu as mãos exasperado e amaldiçoou a lei desumana que lhe vedava a passagem para o inferno. Apelou a toda a legião de demónios para que o viessem buscar, jurou que o seu único desejo era ser condenado e amaldiçoado e garantiu que se atiraria ao pescoço do primeiro padre que lhe aparecesse à frente para poder deitar a mão a Nicolo! Quando informado disto, o papa ordenou que Piachi fosse condenado sem absolvição; nenhum padre o acompanhou, e enforcaram-no, em silêncio, na praça del Popolo

Henrich von Kleist, «O Órfão» («Der Findling», 1811) , Ficções - Revista de Contos, nº 12, trad. José Maria Vieira Mendes, Editorial Caminho, Lisboa, 2005, pp. 26-27. 


fotografia: filipe sousa | 12 julho 2009

Algures entre Marselha e Frankfurt

«(...) no mundo administrado e organizado à escala planetária a aventura e a miséria da viagem parecem limitadas; os viajantes de Baudelaire, partidos em busca do inaudito e dispostos a naufragar na sua surtida, encontram já no desconhecido, apesar de todos os desastres imprevistos, o mesmo tédio que deixaram em casa. Seja como for, movermo-nos é melhor do que nada: olha-se da janela do comboio que se precipita na paisagem, oferece-se ao rosto um pouco da frescura que desce das árvores do caminho, misturando-se à gente, e alguma coisa corre e passa através do corpo, o ar insinua-se entre as roupas, o eu dilata-se e retrai-se como uma medusa, um pouco de tinta transborda do tinteiro para se diluir num mar cor de tinta. Mas este brando afrouxar dos laços, que substitui a farda por um pijama, é a hora de recreio do programa da escola, mais do que a promessa da grande dissolução, do voo louco com que se transpõem os confins.»

Claudio Magris, Danúbio (Danubio, 1986), trad. Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992, pp. 13-14. 


fotografia: clara lourenço | 26 novembro 2017

Lisboa

Em primeiro plano: o Bairro Azul, à direita; a Gulbenkian, incluindo o Centro de Arte Moderna, à esquerda. A dividi-los, a António Augusto Aguiar, que sobe até ao Corte Inglês e desce ao encontro da Fontes Pereira de Melo. No mesmo eixo, ao fundo, o morro do Castelo. Ainda à esquerda, os arranha-céus de Picoas e a cúpula, sumida, do Panteão, junto ao rio. Ainda à direita, o contínuo de verde que liga os jardins do palacete Henrique Mendonça, o Parque Eduardo VII e a alameda da Avenida da Liberdade. Falta a barra azul do Tejo, com o traço, a branco, de um paquete de partida para outro cais. Finalmente, a "outra banda", e, por cima, o céu também azul, de onde tomamos Lisboa inteira.


fotografia: clara lourenço | 19 maio 2017






























«Com a mesma cor discreta das tapeçarias, com a graça da perspectiva medieval que o avião oferece, Lisboa docemente apresenta suas colinas, suas verduras, seus telhados minuciosamente desenhados, seu rio com muitas embarcações, fiel à memória das antigas gravuras.
Dificilmente, outro aeroporto poderá oferecer mais agradável paisagem que este, de Lisboa; e se os marujos da Nau Catrineta já lindamente avistavam, do longo mar, tão belas meninas sentadas "à sombra do laranjal", que visões teriam agora, se pelos ares chegassem a estes sítios, onde tudo se dispõe com tão envolvente poesia?
Depois da noite profunda sobre o invisível mar; depois das cidades de nuvens, de aérea mas resistente arquitectura; depois da clara estrela nascida do deserto e do Mediterrâneo, Lisboa parece um regaço florido,- miniatura de cancioneiro, nítida e suave, muito antiga e muito atual.
O prazer dessa vista aérea quase perturba a indefinível delícia do alto vôo, desprendido da terra, quando a distância anula o convívio humano, e unifica os países no destino total do planeta.
Lisboa mostra seus telhados coloridos de vários tons de encarnado; mostra um céu azul um pouco evaporado pelo ouro do sol, mostra uns longes verdes esfumados e prateados, na curva moldura do horizonte de oliveiras.
E o rio estaciona, muito nítido, muito gráfico, como à espera de que lhe façam o retrato, com suas ondas tão bem arranjadas como nos velhos mapas, e seus barcos parecem apenas uma decoração náutica: tem-se a tentação de procurar a rosa-dos-ventos num dos cantos da paisagem, e a alegoria de algum gênio reclinado, ou na nereida Olisipo, a desenrolar a faixa com o seu nome, tendo aos pés o Tejo sob a forma de um manso golfinho encaracolado.
E telhados, embarcações, oliveiras tudo dança como cartas de um baralho pitoresco, tudo sai do lugar, desloca-se, muda de nível, à mercê do avião que baixa.
"Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa." Os passageiros atam os cintos sem nenhuma desconfiança. Ninguém pode acreditar em nenhum perigo, sob um céu tão meigo, no deleitoso ambiente formado por essas cores da terra e das casas, divinamente harmonizadas.
Custa a crer que há duzentos anos tudo isto foi sacudido por um terremoto: que as igrejas caíram, que a água cresceu, que os incêndios lavraram por essas ruas, que as ruínas se amontoaram por aqui, melancolicamente.
Porque o chão é macio como pelúcia. desliza-se como num jardim. O quadrimotor adquire um novo encanto: é um pássaro límpido descendo num canteiro de flores. Que não perde, é certo, sua noção de céu altíssimo, mas que se permite esse contacto com a terra como um doce prazer merecido.»

Cecília Meireles, «Quem não viu Lisboa...» in Crônicas de viagem 2 (1952), reimpr. editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 271-272.

Lago Maggiore, Santa Caterina del Sasso

«Fabrício encontrou a mãe e uma das irmãs em Belgirate, grande aldeia do Piemonte, na margem direita do Lago Maior: a margem esquerda faz parte do Milanês e, por consequência, da Áustria. Aquele lago, paralelo ao de Como, e que também corre do norte ao sul, fica situado a umas vinte léguas mais ao poente. O ar das montanhas, a tranquila majestade do soberbo lago, que lhe recordava o da sua infância, tudo contribuía para transformar em doce melancolia o desgosto de Fabrício. Era com ternura infinita que pensava agora na duquesa; parecia-lhe que, de longe, ganhava por ela aquele amor que nunca experimentara por mulher nenhuma... (...)
Fabrício (...) acompanhou a mãe até ao porto de Laveno, na margem esquerda do Lago Maior, margem austríaca, onde ela desembarcou pelas oito horas da tarde. (O lago é considerado um país neutral, e não se pede o passaporte a quem não desce a terra.) Mas, mal a noite caiu, fez-se desembarcar nessa mesma margem austríaca, no meio dum bosquezinho que entra pela água dentro. Alugara uma sediola, espécie de tílburi campestre e rápido, graças ao qual pôde seguir a quinhentos passos de distância a carruagem da mãe: ia disfarçado de lacaio da casa del Dongo, e nenhum dos numerosos funcionários da Polícia ou da alfândega se lembrou de lhe pedir o passaporte.»

Stendhal, A Cartuxa de Parma  (La Chartreuse de Parme, 1839), trad. Adolfo Casais Monteiro, Editorial Estúdios Cor, Lisboa, 1957, pp.138-139.


fotografia: filipe sousa | 25 junho 2004

Sobral da Adiça, Rua da Liberdade 31

Passam agora cinquenta anos sobre a aparição desta obra de referência da arquitectura de terra e trinta sobre a morte do seu autor. 

«(...) o camponês construiu a sua casa com terra, ou com tijolos de terra, que tirou do solo e deixou secar ao  sol. E ali, em cada casebre, em cada casa em ruínas, encontrava-se a resposta ao meu problema. Ali, durante anos, durante séculos, o camponês tinha sábia e tranquilamente explorado este óbvio material de construção, enquanto a nós, com as nossas ideias modernas aprendidas nas escolas, nunca nos tinha passado pela cabeça que fosse possível utilizar um material tão insignificante como a terra numa criação tão séria como uma casa. Mas por que não? Na verdade, as casas dos camponeses eram pequenas, escuras, sujas e pouco confortáveis, mas não por culpa do tijolo de terra. Naquelas casas não havia nada que não pudesse ser resolvido com um bom projecto e uma varridela. Por que não utilizar este material caído do céu nas nossa casas de campo? E, realmente, por que não melhorar as casas dos próprios camponeses? Por que razão haveria de existir diferença entre a casa do camponês e a casa do proprietário? Construam ambas em tijolos de terra, façam bons projectos para ambas, e ambas poderão oferecer aos seus proprietários beleza e conforto. (...)


fotografia: filipe sousa | 19 setembro 2011

Se uma aldeia tiver de ser construída pelos seus futuros habitantes, é preciso dar-lhes as competências necessárias. Seja qual for o entusiasmo que o sistema cooperativo possa suscitar, não servirá de grande coisa se as pessoas não souberem assentar tijolos. O número de trabalhadores relativamente qualificados necessário à construção de uma aldeia é demasiado elevado para se colocar a hipótese de recorrer à ajuda exterior, pois isso faria subir muito o preço. (...)
Já expliquei que um sistema cooperativo de construção só pode funcionar se o trabalho de cada homem puder ficar registado como um empréstimo à sociedade a ser devolvido sob a forma de construção. Obviamente, o trabalho de um pedreiro qualificado terá mais valor do que o de um trabalhador não especializado. Caso a comunidade permita que os seus pedreiros empreguem o seu tempo precioso a instruir aprendizes, será necessário que alguém pague por este tempo. Por isso, o plano de formação artesanal deverá prever que os aprendizes paguem a sua formação fornecendo à comunidade, a um preço abaixo do normal, as suas competências recém-adquiridas.»

Hassan Fathy, Arquitectura para os Pobres - uma experiência no Egipto rural (Arquitecture for the Poor, an experiment in rural Egypt, 1969), trad. Joana Pedroso Correia, Argumentum/Dinalivro, Lisboa, 2009, pp.15,130-131.

Mediterrâneo, Palombaggia

«"Um bom capitão transforma o Atlântico em Mediterrâneo; um mau capitão transforma o Mediterrâneo em Atlântico" - isto foi  o que ousou dizer em voz alta um dos passageiros do navio, um veneziano. Não era a mim que se dirigia, mas a todos aqueles que estavam reunidos junto ao filerete. Se evitei falar-lhe, fixei no entanto a sua fórmula, prometendo a mim mesmo reproduzi-la nestas páginas.»

Amin Maalouf, O Périplo de Baldassare (Le Périple de Baldassare, 2000), trad. António Pescada, 3ª ed., Difel, Algés, 2001, p. 267.


fotografia: filipe sousa | outubro 2005


Barcelona, Passeig de Gràcia 92 (casa Milà «La Pedrera»)

«As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão sempre cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nossos parlamentos.»

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser (Nesnesitelná lehkost byti, 1983), trad. Joana Varela, 25ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002, p. 179.


fotografia: clara lourenço | 25 junho 2017

Rungsted Kyst, Rungsted Strandvej 111 (casa de Karen Blixen)

«Durante essa época, uma coisa curiosa foi o facto de eu nunca ter acreditado que teria de abandonar a fazenda e deixar a África. As pessoas à minha roda, todas elas razoáveis, diziam-me que assim teria de ser; a cada distribuição do correio, recebia cartas da Dinamarca a provar que assim era e todos os factos do meu quotidiano apontavam nesse sentido. No entanto, nada se encontrava mais afastado dos meus pensamentos e eu continuava a acreditar que os meus ossos ficariam depositados em solo africano. Esta fé tão firme não tinha outros alicerces, outra razão de ser, que não fosse a minha completa incapacidade de imaginar qualquer coisa de diferente. (...)
Deste modo, fui a última a compreender que tinha de partir.»

Karen Blixen, África Minha (Out of Africa, 1937), trad. Ana Falcão Bastos, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1994, p. 288.


fotografia: filipe sousa | agosto 2001

Provence / Provença

GATO

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Abandono Vigiado, 1960), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 158.


fotografia: clara lourenço | 7 maio 2009

Massou

Com o filho entretido sobre o tapete, Amna ficou livre para amassar um pouco de farinha, no avesso de uma pele de ovelha, e dar-lhe a forma de um disco. Em segundos, o calor do forno torná-lo-ia um pão estaladiço e saboroso. Ao mesmo tempo, os aromas iam saturando a cozinha e açulando o apetite de galinhas e gatos que se batiam por uns grãos de couscous.   

Filipe Sousa, Alto Atlas Oriental: no coração de Marrocos (diário de viagem), 1993.


fotografia: filipe sousa | dezembro 1993

Roma, Fórum Romano

«Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre; é contribuir também para essa lenta transformação que é a vida das cidades. Quantos cuidados para encontrar a situação exacta de uma ponte ou de uma fonte, para dar a uma estrada na montanha a curva ao mesmo tempo mais económica e mais pura...(...)
Reconstruí muito: é colaborar com o tempo sob o seu aspecto de passado, apreender-lhe ou modificar-lhe o espírito, servir-lhe de muda para um mais longo futuro; é reencontrar sob as pedras os segredos das origens. A nossa vida é breve: falamos sem cessar dos séculos que precedem ou se seguem ao nosso como se nos fossem totalmente estranhos; contudo eu tocava-lhes nos meus manejos com a pedra. Aquelas paredes que eu escorava estão ainda quentes do contacto com corpos desaparecidos; mãos que ainda existem acariciarão estes fustes de colunas. Quanto mais meditei sobre a minha morte, e sobretudo sobre a de um outro, mais tentei acrescentar às nossa vidas estes prolongamentos quase indestrutíveis. Em Roma utilizava de preferência o tijolo eterno, que só muito lentamente volta à terra de que nasceu e cujo esmagamento ou imperceptível  pulverização se faz de tal maneira que o edifício permanece montanha mesmo quando deixou de ser visivelmente uma fortaleza, um circo ou um túmulo.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, pp. 109-110.

fotografia: pedro sousa | 28 junho 2015

Moura, Convento do Carmo

«A partir do seu interesse pela beleza e pela sua posse, Ruskin chegaria a cinco conclusões decisivas. Em primeiro lugar, que a beleza é o resultado de um conjunto complexo de factores, que afectam psicológica e visualmente o espírito. Em segundo lugar, que os seres humanos são portadores de uma tendência inata que os torna sensíveis à beleza e lhes inspira o desejo de a possuírem. Em terceiro lugar, que existem numerosas expressões deste desejo de posse, entre as quais se incluem o desejo de comprar recordações e tapetes, de gravar o próprio nome em colunas e de tirar fotografias. Em quarto lugar, que há só uma maneira de possuir efectivamente a beleza e que essa maneira consiste em compreendê-la, tomando consciência em nós dos factores (psicológicos e visuais) que são responsáveis pelo sentimento que se lhes refere. E, por fim, que o meio mais eficaz de conseguirmos uma tal tomada de consciência é tentarmos descrever os lugares belos através da arte, da escrita ou do desenho, sem perdermos tempo a considerar se acaso teremos um mínimo de talento que justifique fazê-lo.»

Alain de Botton, A Arte de Viajar (The Art of Travel, 2002), trad. Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004, p. 216.


fotografia: filipe sousa | 1 setembro 2015

Taormina

«Fontana Vechia, fonte velha. É assim que se chama a casa. Pace, paz: deparamo-nos com a palavra gravada no patamar de pedra. Não há nenhuma fonte; temos tido, julgo eu, algo semelhante a paz. É uma casa cor-de-rosa dominando um vale de oliveiras e amendoeiras que se afunda no mar. Nos dias límpidos, vê-se, na outra margem, a ponta extrema de Itália, a península de Calábria. Por trás, um sinuoso carreiro de pedras, sobretudo percorrido por camponeses, com os seus burros e cabras, atravessa a encosta da montanha para desembocar na povoação de Taormina. (...)
Taormina, que na verdade é uma extensão de Naxos, a primeira cidade grega da Sicília, leva uma existência ininterrupta desde 396 a.C. Goethe explorou-a em 1787 e descreve-a do seguinte modo: «Sentados onde antes se sentavam os espectadores da bancada superior, temos de confessar desde logo que nunca nenhum público em nenhum teatro teve diante de si espectáculo semelhante ao que daí se avista. À direita, nos altos rochedos da encosta, castelos escalam o céu; mais longe, a cidade estende-se a nossos pés, e, embora todos os seus edifícios sejam construções recentes, são ainda indubitavelmente semelhantes àqueles que antigamente ocuparam os seus lugares. Em seguida, o olhar recai sobre toda a imensa montanha do Etna, depois à esquerda vislumbra a costa até alcançar Catânia, e mesmo Siracusa, e finalmente a extensa e vasta paisagem é enquadrada pelo imenso vulcão fumegante, mas não de todo horrível, pois a atmosfera, com o seu efeito tranquilizante, dá-lhe um ar mais distante e brando do que realmente é.» Presumo que o ponto de vista de Goethe fosse o anfiteatro grego, uma soberba ruína no cimo de um penhasco onde ainda hoje se fazem ocasionalmente peças de teatro e concertos.» 

Truman Capote, Os Cães Ladram - Figuras Públicas e Partes Privadas (The Dogs Bark - Public People and Private Places, 1973), trad. Margarida Vale de Gato, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2002, pp. 104, 107-108.

fotografia: clara lourenço | 15 setembro 2010

Moura, Rua 5 de Outubro 17

«Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?
A fita métrica deve estar na gaveta superior direita da cómoda holandesa, onde sempre esteve; a chave, vejo-a daqui: chama de níquel vacilando na fechadura do último gavetão. Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções.(...)
A casa teve, desde o início, várias metamorfoses. Uma, documentada: e embora o documento não seja utilizável na totalidade, houve sem dúvida por essa altura (fins do século passado?) modificações e aumentos, a partir do corpo principal (que dá sobre a paisagem deserta). (...)
Não medi ainda as superfícies frágeis (portas, postigos e janelas) em contacto com o exterior, nem o pé-direito da sala (as verdadeiras linhas de resistência). Exagerei com certeza a importância da deambulação nocturna pela casa e o poder do halo contra as ameaças lá de fora. Não é só a névoa: a lama das gisandras começa também a entrar. Alicerces velhos (os mesmos do início) que ninguém reforçou: pelo menos, a palavra não está no projecto. Mudaram imperceptivelmente: décadas e décadas de escuridão. Metamorfoses invisíveis (talvez as mais importantes).»

Carlos de Oliveira, Finisterra - paisagem e povoamento, 3ª ed., Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979, pp. 5-6, 179, 181-182. 


desenho: filipe sousa | agosto 2007

Paris, Montmartre

«Estou em Paris - os que o sabem ficam contentes, a maior parte deles inveja-me. Têm razão. É uma grande cidade, grande e cheia de tentações. No que me diz respeito, tenho de reconhecer que de certo modo sucumbi-lhes. Penso que não o posso exprimir de outra maneira. Sucumbi a estas tentações, o que causou certas modificações, se não no meu carácter, pelo menos na minha mundividência, de qualquer modo na minha vida. Uma concepção de todas as coisas totalmente diferente formou-se em mim sob estas influências. Existem certas diferenças que me separam das outras pessoas mais do que qualquer outra coisa até agora. Um mundo transformado. Uma vida nova, cheia de novos sentidos. Momentaneamente tenho alguma dificuldade, porque tudo é novo. Sou um principiante nas minhas próprias circunstâncias.»

Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge, 1910), trad. Maria Teresa Dias Furtado, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2003, p. 88.


fotografia: clara lourenço | 2 março 2012

Barcelona, Passeig de Gràcia

«Vagueio pelas ruas da Gràcia num transe. Sento-me no La Nena, peço um chocolate quente, fico com a chávena nas mãos a sorrir de estar em casa, começando pelo anúncio «Aqui pode ler-se». Leio o teu John Berger. Levo-o comigo pela rua Verdi, sentamo-nos a comer nacos de parmesão com vinho branco. Depois descemos às Ramblas, a espreitar os discos na rua dos Tallers, os cogumelos na Boquería. Seguimos até ao porto e ficamos a ver os barcos.»

Alexandra Lucas Coelho, E a Noite Roda, Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2014, p. 178.


fotografia: filipe sousa | 25 junho 2017

Firenze / Florença, Piazza di San Giovanni

«Olha-se de repente para o meio da cidade e encontra-se ali, ao mesmo tempo enorme e como ao alcance da mão, o Duomo da Catedral de Santa Maria del Fiore: o Duomo, que é como uma tulipa fechada, que é como um coração pousado numa praça. Daí em diante, o passeio torna-se completamente lírico.
Nem os turistas têm animo para consultar os seus guias de viagem. Param, maravilhados, diante do Batistério, com os olhos perdidos nessa "Porta do Paraíso" cinzelada por Ghiberti, que descreve, com minúcias de ourivesaria, cenas do antigo Testamento, - desde a história de Adão até o encontro de Salomão com a rainha de Sabá.(...)
O Campanile de Giotto sobe em suas cornijas sucessivas: as artes e obras humanas desfilam diante dos nossos olhos, nos baixos-relevos de Pisano e della Robbia; depois, são janelas, nichos, - a inquietação da  altura das torres, com suas pedras tão longe, tão acima da tranquilidade primitiva do chão.(...)
Florença tem o tamanho exato das cidades para sempre amadas: tudo se pode conhecer num dia; e todos os dias haverá, dentro dela, coisas para ver - até ao fim do mundo, que é mais do que o fim da vida.»

Cecília Meireles, «Voz em Florença» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, p. 76.


fotografia: clara lourenço | 14 dezembro 2010

Moura, Praça Sacadura Cabral

No final da tarde de hoje, 7 de Fevereiro do ano da graça de 1573, D. Sebastião, acabado de completar dezanove anos, chega a Moura para uma visita de dois dias. A Vila de Moura é a trigésima primeira etapa da digressão régia, iniciada em Évora no dia 2 de Janeiro, por terras alentejanas e algarvias, ou seja, as que se situam na primeira linha de combate com os mouros do norte de África. Constituem a comitiva cerca de meia centena de fidalgos e cortesãos (muitos dos quais acabarão por perder-se, cinco anos depois, juntamente com o rei, em Alcácer Quibir). No grupo de notáveis acompanhantes, segue João Cascão, cronista do senhor D. Duarte, o Condestável do Reino, que descreve os pormenores da jornada, criando uma espécie de fresco da sociedade e dos costumes. Passaram, entretanto, 446 anos, mas há coisas que não mudam.   


fotografia: filipe sousa | 2002
























«Os touros acabados (em Serpa), partiu entre as duas e as três para Moura, pela posta, com o Senhor D. Duarte, o Duque de Aveiro e todos os fidalgos que quiseram correr, que são quatro léguas de jornada, Chegou El-Rei a uma fonte e esteve bebendo por um chapéu de tafetá do filho do Conde do Vimioso. E mataram uma adem numa lagoa às coladas, a qual com medo do falcão, que lhe tinha dado uma pancada, veio ali meter-se.
No caminho vindo correndo a posta caiu o cavalo com D. Rodrigo Lobo e o tratou muito mal, e de Moura mandou El-Rei que se fosse para Évora. D. Álvaro, filho do Conde do Vimioso, deu outra queda, que não fez nada.
Um pedaço fora de Moura veio recebê-lo o Alcaide-Mor, Rui Teles de Meneses com cem de cavalo de capas e espadas, e com onze bandeiras de Ordenança. E chegando à Vila receberam-no danças - uma de homens e outra de moços - e à entrada da Vila de Moura estava um púlpito de madeira, com um pano de seda por cima, em que lhe fez o Prior de S. João, com seu capelo de Mestre em Cortes, de veludo azul forrado de branco como teólogo, a fala que se segue.
«Muito alto, e muito poderoso Rei e Senhor nosso, gloriem-se os Reinos de toda a Europa, jactem-se os Reinos de todas as mais nações da esfera terrena, por serem Reis com título de altos e poderosos, mas glorie-se a felicíssima e cristianíssima Lusitânia por ter Rei a que se deve outro mais alto e mais eminente título, porque restituindo a Vossa Alteza o que nesta parte lhe é devido, acrescentando digo, miraculoso Rei e Senhor nosso, e filho das lágrimas de vosso povo, não com menos lágrimas a Deus pedido que com grandíssima alegria dele impetrado. Os antigos egípcios que em lugar de letras usavam de figuras, quando queriam significar Deus pintavam um ceptro direito e levantado com um olho em cima, dando a entender por esta figura ser Deus justo e ver tudo.
Na Sagrada Escritura os Reis chamam-se Deuses, não por natureza mas por imitação. Para Vossa Alteza ser semelhante a Deus que os do Egipto pintavam com ceptro e olho, tem necessidade de ter o ceptro de justiça direito, guardando-a em tudo a todos como realmente o faz, e feito o 1º ficava o 2º que é o olho, para ver aos seus e ao seu Reino, como agora vê. E com estas duas partes fica V. A. na imitação semelhante a Deus. Grande Dom e privilégio fora para esta Moura, cristã e leal, conceder-lhe a natureza que pudessem seus moradores mostrar a Vossa Alteza os corações abertos, ou Vossa Alteza conhecer em todos a suprema alegria que, com vossa vinda, de dentro das entranhas lhe rebenta e sai ao exterior, como se mostra pelos sinais de alegria e festas, a que a brevidade do tempo pôs taxa. Comum é a todas as nações festejar a entrada de seus Reis em suas terras, mas nisto tem a palma  a Lusitânia, porque os outros fazem festas com as alfaias da sua fazenda, porém nós com as fazendas e com os corações, que é a melhor alfaia com que servimos Vossa Alteza; pelo que as outras nações fazem a seus Reis festas simples, mas nós a Vossa Alteza duplas. Entre os povos deste Reino, que mais de coração serviram e servem a Cora Real, é este povo, o qual não somente foi leal, mas mostrou grande esforço de ânimo nas guerras dos Reinos vizinhos e com muita alegria os maiores dele tingem de seu próprio sangue esses largos campos de África, Índia e o Mar Oceano; por serviço de Vossa Alteza e aumento do Reino. Para vos servir nascemos. Será pois felicíssima a vinda de Vossa Alteza a esta Moura tão leal e servidoura. Entre com Vossa Alteza toda a prosperidade, toda a paz e tudo o que tem nome de bem. E vós moradores desta terra, comigo e com os corações e altas vozes dizei: Viva El-Rei D. Sebastião. Viva, viva. Amen».
Acabada  a fala, e feitas as cerimónias costumadas receberam-no os Vereadores com um pálio de damasco carmesim, e o Alcaide-Mor acompanhou-o a pé na forma costumada. Quiseram os Vereadores levá-lo por uma rua que estava concertada e na qual havia moças formosas e melhor vestidas e toucadas que as do Algarve, mas El-Rei mandou que o levassem por outra rua, que fosse mais perto de sua casa, o que se fez, - as damas o sentiram. Assim levaram El-Rei até à igreja matriz; fazendo nela oração tornou-se a pôr a cavalo e foi-se para suas casas, que eram no castelo, à porta do qual lhe entregou o Alcaide-Mor as chaves: aqui estava um moço para lhe dizer uns versos em latim. El-Rei passou depressa, não o ouviu, e depois mandou-o chamar a casa. O Senhor D.Duarte, deixando El-Rei em sua casa, foi ver a rua das formosas e um mosteiro de S. Francisco, que há nesta Vila. Do pálio fez o Estribeiro-Mor esmola ao Mosteiro de S. Francisco. A Vila de Moura terá 1400 vizinhos.
Domingo, 8 de Fevereiro, ouviu El-Rei missa e pregação em Moura num mosteiro de freiras de advocação de Nossa Senhora da Piedade da Ordem do Carmo; pregou um apóstolo de dois que, ao presente, se aqui acharam. O Senhor D. Duarte a ouviu com ele; saindo da missa foi ver o curro, donde haviam de correr os touros, e daí disse que o levassem pelas melhores ruas de Moura. Vistas as ruas, foi a  sua casa jantar; às duas horas foi ver os touros de um eirado e o Senhor D. Duarte, o Duque de Aveiro e muitos fidalgos. Os toureiros de cavalo foram o Alferes-Mor, Cristóvão de Távora, Francisco de Távora, Luís Álvares de Távora e Rui Teles, moço da câmara de El-Rei, o qual fez algumas sortes boas e os mais. Os touros foram mansos. Acabados os touros, foi passeando El-rei até junto do Odiana, que será da Vila meia légua e já de noite se recolheu. O Senhor D. Duarte andou vendo as formosas, - e o Duque de Aveiro com ele -, foi um pedaço fora da Vila passeando. No castelo houve de noite muitas luminárias.
2ª feira, 9 de Fevereiro, ouviu El-Rei missa em Moura num mosteiro de frades de Nossa Senhora do Carmo, partiu pela posta para Mourão, cinco léguas de jornada.»

João Cascão, «Relação da jornada de el-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora», 1573, in Francisco de Sales Monteiro, Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve, Livros Horizonte, 1984, pp. 126-128. 























Torino / Turim, Viale Pier Andrea Mattioli 39

Este mesmo Pó não mais voltará a passar na janela (do salão nobre) do Castello del Valentino.


fotografia: filipe sousa | 13 abril 2018

København / Copenhaga

A BICICLETA

O meu marido saiu de casa no dia
25 de Janeiro. Levava uma bicicleta
a pedais, caixa de ferramentas de pedreiro,
vestia calças azuis de zuarte, camisa verde,
blusão cinzento, tipo militar, e calçava
botas de borracha e tinha chapéu cinzento
e levava na bicicleta um saco com uma manta
e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo
e uma panela de esmalte azul.
Como não tive mais notícias, espero o pior.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (As horas já de números vestidas, 1981), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 417.

PS. As bicicletas são removidas sem responsabilidade.


fotografia: filipe sousa | agosto 2001

Furnas, Parque Terra Nostra

«-O jardim?
-O jardim dos caminhos que se bifurcam.(...)
Deixo aos vários porvires (não a todos) o meu jardim dos caminhos que se bifurcam. (...)
Quase de imediato compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários porvires (não a todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, e não no espaço. (...) Em todas as ficções, sempre que um homem  se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras... (...) Cria, assim, diversos porvires, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. (...)
O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma enorme adivinha, ou parábola, cujo tema é o tempo...(...) Ao contrário de Newton e de Schopenhaeur, o seu antepassado não acreditava num tempo uniforme e absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos, divergentes, convergentes e paralelos. Esta trama de tempos que se aproximam, se bifurcam e se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Nós não existimos na maior parte desses tempos, nalguns deles existe você e eu não; noutros, eu, e não você, noutros ainda, existimos os dois. Neste, que um favorável acaso me proporciona, você chegou a minha casa; noutro, você, ao atravessar o jardim, deu comigo morto; e noutro, eu digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma.»

Jorge Luís Borges, «O jardim dos caminhos que se bifurcam» in Ficções (Ficciones, 1944), trad. José Colaço Barreiros, Editorial Teorema, Lisboa, 1998, pp. 79-92.


fotografia: filipe sousa | 22 julho 2016