Moura, Praça Sacadura Cabral

No final da tarde de hoje, 7 de Fevereiro do ano da graça de 1573, D. Sebastião, acabado de completar dezanove anos, chega a Moura para uma visita de dois dias. A Vila de Moura é a trigésima primeira etapa da digressão régia, iniciada em Évora no dia 2 de Janeiro, por terras alentejanas e algarvias, ou seja, as que se situam na primeira linha de combate com os mouros do norte de África. Constituem a comitiva cerca de meia centena de fidalgos e cortesãos (muitos dos quais acabarão por perder-se, cinco anos depois, juntamente com o rei, em Alcácer Quibir). No grupo de notáveis acompanhantes, segue João Cascão, cronista do senhor D. Duarte, o Condestável do Reino, que descreve os pormenores da jornada, criando uma espécie de fresco da sociedade e dos costumes. Passaram, entretanto, 446 anos, mas há coisas que não mudam.   


fotografia: filipe sousa | 2002
























«Os touros acabados (em Serpa), partiu entre as duas e as três para Moura, pela posta, com o Senhor D. Duarte, o Duque de Aveiro e todos os fidalgos que quiseram correr, que são quatro léguas de jornada, Chegou El-Rei a uma fonte e esteve bebendo por um chapéu de tafetá do filho do Conde do Vimioso. E mataram uma adem numa lagoa às coladas, a qual com medo do falcão, que lhe tinha dado uma pancada, veio ali meter-se.
No caminho vindo correndo a posta caiu o cavalo com D. Rodrigo Lobo e o tratou muito mal, e de Moura mandou El-Rei que se fosse para Évora. D. Álvaro, filho do Conde do Vimioso, deu outra queda, que não fez nada.
Um pedaço fora de Moura veio recebê-lo o Alcaide-Mor, Rui Teles de Meneses com cem de cavalo de capas e espadas, e com onze bandeiras de Ordenança. E chegando à Vila receberam-no danças - uma de homens e outra de moços - e à entrada da Vila de Moura estava um púlpito de madeira, com um pano de seda por cima, em que lhe fez o Prior de S. João, com seu capelo de Mestre em Cortes, de veludo azul forrado de branco como teólogo, a fala que se segue.
«Muito alto, e muito poderoso Rei e Senhor nosso, gloriem-se os Reinos de toda a Europa, jactem-se os Reinos de todas as mais nações da esfera terrena, por serem Reis com título de altos e poderosos, mas glorie-se a felicíssima e cristianíssima Lusitânia por ter Rei a que se deve outro mais alto e mais eminente título, porque restituindo a Vossa Alteza o que nesta parte lhe é devido, acrescentando digo, miraculoso Rei e Senhor nosso, e filho das lágrimas de vosso povo, não com menos lágrimas a Deus pedido que com grandíssima alegria dele impetrado. Os antigos egípcios que em lugar de letras usavam de figuras, quando queriam significar Deus pintavam um ceptro direito e levantado com um olho em cima, dando a entender por esta figura ser Deus justo e ver tudo.
Na Sagrada Escritura os Reis chamam-se Deuses, não por natureza mas por imitação. Para Vossa Alteza ser semelhante a Deus que os do Egipto pintavam com ceptro e olho, tem necessidade de ter o ceptro de justiça direito, guardando-a em tudo a todos como realmente o faz, e feito o 1º ficava o 2º que é o olho, para ver aos seus e ao seu Reino, como agora vê. E com estas duas partes fica V. A. na imitação semelhante a Deus. Grande Dom e privilégio fora para esta Moura, cristã e leal, conceder-lhe a natureza que pudessem seus moradores mostrar a Vossa Alteza os corações abertos, ou Vossa Alteza conhecer em todos a suprema alegria que, com vossa vinda, de dentro das entranhas lhe rebenta e sai ao exterior, como se mostra pelos sinais de alegria e festas, a que a brevidade do tempo pôs taxa. Comum é a todas as nações festejar a entrada de seus Reis em suas terras, mas nisto tem a palma  a Lusitânia, porque os outros fazem festas com as alfaias da sua fazenda, porém nós com as fazendas e com os corações, que é a melhor alfaia com que servimos Vossa Alteza; pelo que as outras nações fazem a seus Reis festas simples, mas nós a Vossa Alteza duplas. Entre os povos deste Reino, que mais de coração serviram e servem a Cora Real, é este povo, o qual não somente foi leal, mas mostrou grande esforço de ânimo nas guerras dos Reinos vizinhos e com muita alegria os maiores dele tingem de seu próprio sangue esses largos campos de África, Índia e o Mar Oceano; por serviço de Vossa Alteza e aumento do Reino. Para vos servir nascemos. Será pois felicíssima a vinda de Vossa Alteza a esta Moura tão leal e servidoura. Entre com Vossa Alteza toda a prosperidade, toda a paz e tudo o que tem nome de bem. E vós moradores desta terra, comigo e com os corações e altas vozes dizei: Viva El-Rei D. Sebastião. Viva, viva. Amen».
Acabada  a fala, e feitas as cerimónias costumadas receberam-no os Vereadores com um pálio de damasco carmesim, e o Alcaide-Mor acompanhou-o a pé na forma costumada. Quiseram os Vereadores levá-lo por uma rua que estava concertada e na qual havia moças formosas e melhor vestidas e toucadas que as do Algarve, mas El-Rei mandou que o levassem por outra rua, que fosse mais perto de sua casa, o que se fez, - as damas o sentiram. Assim levaram El-Rei até à igreja matriz; fazendo nela oração tornou-se a pôr a cavalo e foi-se para suas casas, que eram no castelo, à porta do qual lhe entregou o Alcaide-Mor as chaves: aqui estava um moço para lhe dizer uns versos em latim. El-Rei passou depressa, não o ouviu, e depois mandou-o chamar a casa. O Senhor D.Duarte, deixando El-Rei em sua casa, foi ver a rua das formosas e um mosteiro de S. Francisco, que há nesta Vila. Do pálio fez o Estribeiro-Mor esmola ao Mosteiro de S. Francisco. A Vila de Moura terá 1400 vizinhos.
Domingo, 8 de Fevereiro, ouviu El-Rei missa e pregação em Moura num mosteiro de freiras de advocação de Nossa Senhora da Piedade da Ordem do Carmo; pregou um apóstolo de dois que, ao presente, se aqui acharam. O Senhor D. Duarte a ouviu com ele; saindo da missa foi ver o curro, donde haviam de correr os touros, e daí disse que o levassem pelas melhores ruas de Moura. Vistas as ruas, foi a  sua casa jantar; às duas horas foi ver os touros de um eirado e o Senhor D. Duarte, o Duque de Aveiro e muitos fidalgos. Os toureiros de cavalo foram o Alferes-Mor, Cristóvão de Távora, Francisco de Távora, Luís Álvares de Távora e Rui Teles, moço da câmara de El-Rei, o qual fez algumas sortes boas e os mais. Os touros foram mansos. Acabados os touros, foi passeando El-rei até junto do Odiana, que será da Vila meia légua e já de noite se recolheu. O Senhor D. Duarte andou vendo as formosas, - e o Duque de Aveiro com ele -, foi um pedaço fora da Vila passeando. No castelo houve de noite muitas luminárias.
2ª feira, 9 de Fevereiro, ouviu El-Rei missa em Moura num mosteiro de frades de Nossa Senhora do Carmo, partiu pela posta para Mourão, cinco léguas de jornada.»

João Cascão, «Relação da jornada de el-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora», 1573, in Francisco de Sales Monteiro, Uma jornada ao Alentejo e ao Algarve, Livros Horizonte, 1984, pp. 126-128. 























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