Moura, Rua 5 de Outubro 17

«Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?
A fita métrica deve estar na gaveta superior direita da cómoda holandesa, onde sempre esteve; a chave, vejo-a daqui: chama de níquel vacilando na fechadura do último gavetão. Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções.(...)
A casa teve, desde o início, várias metamorfoses. Uma, documentada: e embora o documento não seja utilizável na totalidade, houve sem dúvida por essa altura (fins do século passado?) modificações e aumentos, a partir do corpo principal (que dá sobre a paisagem deserta). (...)
Não medi ainda as superfícies frágeis (portas, postigos e janelas) em contacto com o exterior, nem o pé-direito da sala (as verdadeiras linhas de resistência). Exagerei com certeza a importância da deambulação nocturna pela casa e o poder do halo contra as ameaças lá de fora. Não é só a névoa: a lama das gisandras começa também a entrar. Alicerces velhos (os mesmos do início) que ninguém reforçou: pelo menos, a palavra não está no projecto. Mudaram imperceptivelmente: décadas e décadas de escuridão. Metamorfoses invisíveis (talvez as mais importantes).»

Carlos de Oliveira, Finisterra - paisagem e povoamento, 3ª ed., Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979, pp. 5-6, 179, 181-182. 


desenho: filipe sousa | agosto 2007

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