Lisboa

Em primeiro plano: o Bairro Azul, à direita; a Gulbenkian, incluindo o Centro de Arte Moderna, à esquerda. A dividi-los, a António Augusto Aguiar, que sobe até ao Corte Inglês e desce ao encontro da Fontes Pereira de Melo. No mesmo eixo, ao fundo, o morro do Castelo. Ainda à esquerda, os arranha-céus de Picoas e a cúpula, sumida, do Panteão, junto ao rio. Ainda à direita, o contínuo de verde que liga os jardins do palacete Henrique Mendonça, o Parque Eduardo VII e a alameda da Avenida da Liberdade. Falta a barra azul do Tejo, com o traço, a branco, de um paquete de partida para outro cais. Finalmente, a "outra banda", e, por cima, o céu também azul, de onde tomamos Lisboa inteira.


fotografia: clara lourenço | 19 maio 2017






























«Com a mesma cor discreta das tapeçarias, com a graça da perspectiva medieval que o avião oferece, Lisboa docemente apresenta suas colinas, suas verduras, seus telhados minuciosamente desenhados, seu rio com muitas embarcações, fiel à memória das antigas gravuras.
Dificilmente, outro aeroporto poderá oferecer mais agradável paisagem que este, de Lisboa; e se os marujos da Nau Catrineta já lindamente avistavam, do longo mar, tão belas meninas sentadas "à sombra do laranjal", que visões teriam agora, se pelos ares chegassem a estes sítios, onde tudo se dispõe com tão envolvente poesia?
Depois da noite profunda sobre o invisível mar; depois das cidades de nuvens, de aérea mas resistente arquitectura; depois da clara estrela nascida do deserto e do Mediterrâneo, Lisboa parece um regaço florido,- miniatura de cancioneiro, nítida e suave, muito antiga e muito atual.
O prazer dessa vista aérea quase perturba a indefinível delícia do alto vôo, desprendido da terra, quando a distância anula o convívio humano, e unifica os países no destino total do planeta.
Lisboa mostra seus telhados coloridos de vários tons de encarnado; mostra um céu azul um pouco evaporado pelo ouro do sol, mostra uns longes verdes esfumados e prateados, na curva moldura do horizonte de oliveiras.
E o rio estaciona, muito nítido, muito gráfico, como à espera de que lhe façam o retrato, com suas ondas tão bem arranjadas como nos velhos mapas, e seus barcos parecem apenas uma decoração náutica: tem-se a tentação de procurar a rosa-dos-ventos num dos cantos da paisagem, e a alegoria de algum gênio reclinado, ou na nereida Olisipo, a desenrolar a faixa com o seu nome, tendo aos pés o Tejo sob a forma de um manso golfinho encaracolado.
E telhados, embarcações, oliveiras tudo dança como cartas de um baralho pitoresco, tudo sai do lugar, desloca-se, muda de nível, à mercê do avião que baixa.
"Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa." Os passageiros atam os cintos sem nenhuma desconfiança. Ninguém pode acreditar em nenhum perigo, sob um céu tão meigo, no deleitoso ambiente formado por essas cores da terra e das casas, divinamente harmonizadas.
Custa a crer que há duzentos anos tudo isto foi sacudido por um terremoto: que as igrejas caíram, que a água cresceu, que os incêndios lavraram por essas ruas, que as ruínas se amontoaram por aqui, melancolicamente.
Porque o chão é macio como pelúcia. desliza-se como num jardim. O quadrimotor adquire um novo encanto: é um pássaro límpido descendo num canteiro de flores. Que não perde, é certo, sua noção de céu altíssimo, mas que se permite esse contacto com a terra como um doce prazer merecido.»

Cecília Meireles, «Quem não viu Lisboa...» in Crônicas de viagem 2 (1952), reimpr. editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 271-272.

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